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Salvo-conduto para plantio de cannabis medicinal não está pacificado no TJ-SP

jurinews.com.br

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A concessão de salvo-conduto para o cultivo de cannabis para fins medicinais é uma questão que ainda não está pacificada entre as câmaras de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). De um lado, há magistrados que entendem que os direitos à vida e à saúde devem prevalecer, bem como o princípio da dignidade humana. De outro, estão os desembargadores que alegam não ser possível transformar em atípica uma conduta que está tipificada na Lei de Drogas. 

Como exemplo da primeira corrente, a 4ª Câmara de Direito Criminal autorizou um homem com depressão, ansiedade generalizada e vício em álcool e cocaína a cultivar até 40 plantas em sua casa pelo período de um ano. A decisão impede as autoridades de prender o paciente com a alegação de tráfico de drogas.

Segundo o relator, desembargador Roberto Porto, embora a questão não esteja pacificada na jurisprudência, houve a concessão da ordem em situações semelhantes, não só pelo TJ-SP, mas também por outros tribunais, em casos de diversas doenças. As decisões, em geral, foram fundadas no direito à saúde, e ponderando que os componentes utilizados pelos pacientes equivalem ao produto importado, conforme autorização da Anvisa.

“Todavia, em alguns desses casos de concessão da ordem, foram consignadas condições, seja para a importação de sementes, seja a limitação da quantidade de plantas, e até mesmo quanto ao descarte do material após o processo de extração do óleo, e apresentação de relatórios a respeito do cultivo. Com essas considerações, no caso dos autos, a meu ver, o quadro fático autoriza a concessão da ordem”, afirmou o desembargador.

Porto destacou que a Anvisa já aprovou o uso da cannabis em determinados medicamentos, mas ainda não regulamentou os procedimentos para o cultivo domiciliar da planta para fins medicinais, o que faz com que o melhor tratamento para o paciente (aquele que se mostrou mais eficaz, segundo documentos médicos) seja praticamente inviabilizado, tendo em vista o alto custo da importação.

“Referida lacuna na regulamentação acaba se tornando um obstáculo para que o paciente inicie o cultivo de cannabis em sua residência, para fins medicinais, na medida em que lhe poderiam ser imputadas as sanções penais previstas na Lei 11.343/06 (Lei de Drogas).”

Ele observou que o uso medicinal de canabidiol foi regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina por meio da Resolução 2.113/2014, e que tramita no Senado o Projeto de Lei 514/2017, que propõe a alteração do artigo 28 da Lei de Drogas, com o objetivo de descriminalizar o cultivo de cannabis sativa para fins terapêuticos.

“O ordenamento jurídico infraconstitucional tem caminhado no sentido de maior abrandamento das normas proibitivas no que tange ao uso medicinal de cannabis. Referidas mudanças são esperadas, uma vez que a legislação que garante e regula o direito à saúde deve sofrer constantes atualizações com o fim de acompanhar os avanços tecnológicos e medicinais, permitindo o efetivo acesso ao direito à saúde do cidadão.”

Entretanto, prosseguiu o magistrado, a questão da autorização para cultivo domiciliar da planta para fins medicinais, ainda sem perspectiva de solução definitiva, não pode inviabilizar o tratamento que se mostrou mais eficaz para amenizar o sofrimento físico e psicológico do paciente, ante a supremacia do interesse à vida.

“Nesse contexto, mostra-se possível aplicar, no caso dos autos, em caráter excepcional, o princípio da proporcionalidade, a fim de evitar que sejam imputados ilícitos penais ao paciente, que busca tão somente viabilizar seu tratamento médico, em prestígio à dignidade da pessoa humana e ao direito à saúde, de forma a atenuar seu intenso sofrimento.”

Dessa forma, o relator autorizou o plantio na casa do autor, mas ressaltou que o salvo-conduto não impede a responsabilização criminal, pois se restringe exclusivamente ao tratamento médico. Ou seja: qualquer desvio da finalidade resultará na ilicitude do comportamento e, consequentemente, sujeitará o responsável às sanções legais.

“Por fim, recomenda-se ao interessado o ajuizamento de ação própria na esfera cível, buscando o fornecimento ou o custeio, por órgão do governo, do medicamento de que necessita. Em caso de eventual e futuro fornecimento do medicamento em questão, de forma gratuita pelos órgãos públicos, a autorização contida nestes autos ficará automaticamente cassada.”

No mesmo sentido, a 10ª Câmara de Direito Criminal autorizou uma mulher a cultivar cannabis em casa para uso no tratamento do filho, que foi diagnosticado com transtorno do espectro autista, além de seu próprio tratamento contra ansiedade generalizada.

Para o relator da matéria, desembargador Rachid Vaz de Almeida, impedir que a autora cultive a planta em casa seria uma afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao próprio direito à saúde. Segundo ele, ficou devidamente comprovado nos autos que a mulher e seu filho precisam do medicamento e que, inclusive, eles já vêm obtendo melhora desde o início dos respectivos tratamentos.

Pedidos negados

Por outro lado, a 9ª Câmara de Direito Criminal negou o salvo-conduto por entender que a mera alegação do paciente de hipossuficiência financeira para importação não é motivo plausível para autorizar o cultivo doméstico. No caso julgado, o autor tem transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e depressão.

O relator do processo, desembargador Alcides Malossi Júnior, argumentou que a Anvisa estabeleceu critérios e procedimentos para importação e comercialização de produtos à base de cannabis no país, mas não autorizou o cultivo doméstico.

“Não há regulamentação que autorize o plantio da cannabis, com realce de que a conduta pretendida pelo paciente não tem previsão legal”, alegou o magistrado. Diante da ausência de regulamentação ou norma específica, ele afirmou não ser possível autorizar o plantio da cannabis, principalmente porque há forma legal de obter o medicamento industrializado, “ainda que pela via judicial, mas não pela via de autorização criminal”.

Ainda segundo o relator, o plantio de cannabis não está, neste momento, acobertado por excludentes de ilicitude: “Não se podendo autorizar seja infringida Lei Antitóxica, autorizando plantio de pés de maconha, atuando como legislador, substituindo o ente federal e contemplando interesses, por mais nobres que possam ser, de particular, ao arrepio de normas legais penais vigentes, expedindo perigosa autorização e salvo-conduto para que pés de maconha sejam plantados”.

A 4ª Câmara de Direito Criminal, sob relatoria do desembargador Euvaldo Chaib, também negou um pedido feito por um paciente, que sofre de fortes enxaquecas decorrentes de um traumatismo craniano. Ele alegou que o tratamento exigia a colheita de 12 plantas a cada três meses, totalizando 48 ao ano, mas não conseguiu a autorização.

Chaib afirmou que o cultivo de cannabis para uso próprio, “não havendo distinção legal ao uso medicinal”, é crime tipificado na Lei de Drogas, que diz que incorre nas mesmas penas previstas para o tráfico de drogas quem “semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas”.

“Significa dizer que é juridicamente indispensável, para o fim pretendido pelo paciente, a obtenção de autorização do órgão público competente para concedê-la, até mesmo porque a lei, em sua ementa, é claríssima ao enunciar que ela institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas”, afirmou o desembargador.

Em se tratando de política pública, Chaib afirmou que compete ao Poder Executivo implementá-la, não cabendo ao Judiciário sobrepor-se à administração pública e autorizar o que a lei não diz e não permite. Segundo ele, a União, ao editar a Portaria 344/1998, que trata de substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial, não contemplou a possibilidade do cultivo pessoal de cannabis para fins medicinais.

“O que há é apenas autorização da Anvisa para importação, em caráter excepcional e conforme prescrição médica, de produtos à base de canabinoides. O pleito do paciente, em suma, visa à declaração de atipicidade criminal de uma conduta ilegal, não sendo possível ao Judiciário proferir decisão contrária à lei ou fazer letra morta de dispositivos de lei penal”, completou Chaib.

Para o relator, não se trata de um pedido de salvo-conduto de ir e vir, ou seja, para o exercício da liberdade pessoal de se locomover sem ser preso: “Trata-se de pedido de salvo-conduto muito mais amplo, que garanta ao paciente a liberdade de infringir dispositivo legal, podendo plantar, cultivar, manipular e colher planta que constitui matéria-prima para a preparação de drogas, além de poder extrair o ativo necessário à produção do óleo medicamentoso, que está, ademais, intimamente ligado às condições sanitárias e a testes laboratoriais”.

Chaib disse que não cabe ao Poder Judiciário autorizar a fabricação, ainda que para uso próprio, “de componente químico da erva conhecida como ‘maconha’, cujo plantio, cultivo e colheita encontram óbice na lei criminal”, primeiro por não ser o órgão competente para tal fim, e segundo porque a pretensão implicaria a produção de muitas provas e demonstrações fáticas e técnicas de como se daria o cultivo.

“Somente órgão com competência científica poderia dar a autorização para o cultivo, com a responsabilidade de avaliar e validar as sementes, a forma do cultivo, da colheita e da extração, para que o fitoterápico atingisse, de fato, seu objetivo medicinal. Com efeito, não obstante a Anvisa tenha retirado a cannabis da lista de drogas proibidas, desde que utilizada para fins medicinais, não autorizou a produção do óleo para tratamentos específicos no Brasil.”

Por fim, o magistrado considerou que eventual ausência de condições financeiras do paciente não impede o acesso ao medicamento, “uma vez que diversas alterações ocorreram recentemente, em benefício dos que necessitam de medicamentos à base de cannabidiol, incluindo o acesso por meio do SUS ou até mesmo de planos de saúde”.

Com informações do TJ-SP

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