Promotores e procuradores têm se licenciado de seus cargos em alguns estados para organizar candidaturas para as eleições de outubro deste ano. Integrantes dos Ministérios Públicos de São Paulo e de Mato Grosso do Sul, por exemplo, conseguiram licenças para receber salários integrais enquanto se dedicam à disputa eleitoral.
A postulação das candidaturas por integrantes dos Ministérios Públicos, com afastamento dos cargos com licença remunerada, é uma questão que gera debates na comunidade jurídica. Nos casos de São Paulo e Mato Grosso do Sul, as respectivas procuradorias-gerais estaduais concederam o afastamento provisório, sem necessidade de pedido de exoneração do cargo, e com recebimento de salários.
Mas especialistas apontam que tal decisão contraria a jurisprudência das cortes superiores e a Constituição Federal. Para disputar uma eleição pública, procuradores e promotores deveriam pedir exoneração do cargo, com exceção daqueles que ingressaram na carreira antes da promulgação da Constituição em 1988, de acordo com a Emenda Constitucional 45/2004.
A Justiça Eleitoral tem de 15 de agosto até o dia 11 de setembro para decidir se as candidaturas de promotores públicos licenciados de seus cargos serão válidas para o pleito de outubro.
A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) ingressou com uma reclamação no Supremo Tribuna Federal pedindo a suspensão liminar das autorizações concedidas em São Paulo.
Segundo a ABJD, a decisão do procurador-geral de autorizar a licença contraria a jurisprudência do STF. “Se pretendem disputar uma eleição, procuradores e promotores precisam pedir exoneração do cargo.”
Mais adiante, a ação destaca que “não se pode coadunar com uma insegurança jurídica a ponto de se colocar em dúvida a posição óbvia da Suprema Corte”. O relator da Reclamação 53.373 é o ministro Gilmar Mendes.
SP e MS
No caso paulista, o procurador-geral de Justiça, Mário Sarrubbo, autorizou o afastamento de dois promotores cujo ingresso na instituição ocorreu depois de 1988: Antonio Farto (PSC), pré-candidato a deputado estadual em São Paulo, e Gabriela Manssur (MDB), pré-candidata a deputada federal.
Outros dois integrantes do MP também pré-candidatos foram admitidos ao MP antes dessa data e têm candidaturas avalizadas, Marco Antonio Lelis Mansur e Fernando Capez.
A autorização dos que ingressaram após 1988 no MP tem como base, segundo nota da assessoria de comunicação do MP-SP, a Resolução 5/2006 do Conselho Nacional do Ministério Público e a Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.084, julgada em 2001 pelo Supremo Tribunal Federal.
“O Conselho Nacional do Ministério Público, por meio da Resolução 5/2006, que evidentemente alcança os membros do MP-SP, chancelou a participação no processo eleitoral de promotores e procuradores que ingressaram na carreira até a promulgação da Emenda Constitucional 45/2004. Foi com base nesta normatização do colegiado que, em pleitos anteriores, já ocorreu o afastamento de membros da instituição de diversas unidades para concorrer a cargos eletivos. O próprio Supremo Tribunal Federal, na ADI 2.084, restringiu a possibilidade de filiação partidária de membros da Ministério Público aos casos em que estejam licenciados da carreira para disputar a eleição, admitindo-se, portanto, a capacidade eleitoral passiva (receber votos) dos integrantes da instituição”, cita a nota.
“À luz deste panorama, a Procuradoria-Geral de Justiça não poderia tolher no nascedouro, administrativamente, o exercício deste direito fundamental e indeferir o pedido de afastamento provisório para concorrer ao pleito. Cabe agora à Justiça Eleitoral ratificar ou não o registro da candidatura. Vale ainda ressaltar que os afastamentos se deram nos exatos moldes da LC 64/90”, diz o MP-SP.
No Mato Grosso do Sul, o procurador-geral de Justiça, Alexandre Magno de Lacerda, com base na Portaria 1.466/2022, concedeu licença ao procurador estadual Sérgio Fernando Raimundo Harfouche, com recebimento de vencimentos integrais, de 1º de abril até o registro de sua candidatura.
Ele usou como fundamento o artigo 1º da Resolução do CNMP, o artigo 157 da Lei Complementar estadual 72/1994, e outras leis. Em 2020, a Justiça Eleitoral sulmatogrossense havia impugnado a candidatura do mesmo promotor, por decisão do juiz Roberto Ferreira Filho, que considerou existência de vínculo junto ao Ministério Público de Mato Grosso do Sul.
Em Santa Catarina, segundo o MP-SC, houve uma solicitação de afastamento de um promotor para disputar o pleito de outubro, mas o próprio pré-candidato desistiu de concorrer.
Calendário eleitoral
Os promotores e procuradores de Justiça devem ter se desincompatibilizado dos cargos dentro do prazo de seis meses antes da data das eleições.
Entre 20 de julho e 5 de agosto serão realizadas as convenções partidárias, para definição oficial das candidaturas. Uma vez escolhidos, deverá ser feito o registro das candidaturas.
Os partidos, federações e coligações têm prazo até 15 de agosto para solicitar o registro de candidatura dos escolhidos.
“Isso significa que a partir do dia 15 de agosto, quando houver o pedido de registro de candidatura dessas pessoas, elas serão alvo de pedidos de impugnação de registro, seja movido por adversários ou pela Procuradoria Regional Eleitoral, ou não. E aí caberá ao TRE fazer esse julgamento”, explica Fernando Neisser, presidente da Comissão de Direito Político e Eleitoral do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).
“Esse julgamento deve acontecer até 20 dias antes da eleição, inclusive para permitir aos respectivos partidos, se quiserem, substituir esses candidatos. Porque se esses candidatos forem considerados inelegíveis, os votos dados a eles, se eles permanecerem recorrendo, serão considerados nulos”, complementa.
Alertas
Em reunião no dia 2 de maio, integrantes do Conselho Superior do Ministério Público de São Paulo fizeram alertas sobre a possível ilegalidade do afastamento dos promotores paulistas para disputar as eleições de 2022.
De acordo com gravação em vídeo da reunião ordinária, o conselheiro Saad Mazloum argumentou que o fundamento das decisões da procuradoria-geral fora bastante “econômico” em detrimento à relevância do tema e das consequências que tais deliberações representam.
Mazloum lembrou que é clara a proibição constitucional do exercício de atividade político-partidária aos membros do Ministério Público, conforme artigo 128, parágrafo 5°, inciso II, alínea “e”, da Constituição de 1988, e artigo 44, inciso V, da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei 8.625/1993), assim como resoluções do CNMP, vasta doutrina e jurisprudência, inclusive do STF, no sentido da impossibilidade de filiação político-partidária, e de exercício de cargo eletivo por membros do Ministério Público que ingressaram na carreira após o regime jurídico instaurado pela Constituição de 1988.
“Sou favorável, gostaria muito que membros do Ministério Público, ingressos antes ou depois da Constituição de 1988, pudessem sim se afastar e concorrer a cargos eletivos, no Executivo ou Legislativo. Mas nós somos escravos da lei. A Constituição é bastante clara a esse respeito, vedando esse afastamento aos que ingressaram após a Constituição de 1988. Então solicito a vossa excelência, com base no princípio da autotutela administrativa, que reveja essas decisões, anulando-as. E que se ouça previamente, obviamente sem caráter vinculativo, este Conselho Superior, composto pelo corregedor-geral, três conselheiros eleitos pelo Órgão Especial do Colégio de Procuradores e outros seis conselheiros eleitos por toda a classe, cuidando-se portanto de órgão talhado para manifestar-se a respeito desse relevantíssimo tema”, argumentou Mazloum.
Já o procurador-geral de Justiça, Mario Sarrubbo, defendeu sua decisão dizendo que “pouco importa se (sua decisão) agradou ou não vossa excelência, mas ela foi econômica notadamente em razão de uma estratégia da Procuradoria-Geral de Justiça, como já foi pontuado na última oportunidade em que aqui estive. É em função de uma estratégia nacional porque, por exemplo, estamos agora em Brasília, e sabemos das dificuldades que temos no Congresso Nacional, portanto se não tivermos o arrojo necessário em determinadas situações, nós vamos evidentemente ficar à mercê de outras carreiras muito bem representadas no Congresso Nacional”.
Outro conselheiro, Antonio Carlos da Ponte, foi claro ao defender a possibilidade de promotores de Justiça poderem concorrer a cargos eletivos. E que não há nenhuma dúvida nessa possibilidade se concretizar, mas para aqueles membros que ingressaram na instituição antes de 1988.
“A preocupação do eminente conselheiro Saad é de todo pertinente, ainda mais diante de uma instituição que deve primar pela democracia, e nós não podemos esquecer que todas as questões que estão afetas à instituição são de interesse também do Conselho Superior do Ministério Público”, ressaltou na reunião.
Proibição absoluta
Kenarik Boujikian, desembargadora aposentada do TJ-SP, especialista em Direitos Humanos, membra da Associação de Juízes para a Democracia (AJD) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), considera absoluta a proibição da candidatura nestes termos. “Mas o PGJ ignora por completo a decisão da Suprema Corte. Considero um desrespeito institucional.”
“Não penso que seja aceitável que um procurador-geral de Justiça, que deve primar pelo cumprimento constitucional, simplesmente desconsidere a letra clara da norma e o papel das instituições e dos Poderes da República”, opinou Kenarik.
Ela lembra precedentes do Supremo para respaldar seu posicionamento. Na ADI 5.985, por exemplo, que pretendia dar aos promotores e procuradores a possibilidade de afastamento para concorrer às eleições, a Corte não acolheu o pedido liminar.
Em 2020, na ADI 2.534, decidiu que “não há possibilidade de filiação político-partidária, de exercício de cargo eletivo e de função no poder executivo, por membros do Ministério Público que ingressaram na carreira após o regime jurídico instaurado pela Constituição Federal de 1988”, conforme a ementa do julgamento.
“A vedação ao exercício de atividade político partidária aos membros do Ministério Público constitui causa absoluta de inelegibilidade, impedindo a filiação a partidos políticos e a disputa de qualquer cargo eletivo, salvo se estiverem aposentados ou exonerados, independentemente de o ingresso ter sido após a EC 45/2004 ou entre essa e a promulgação do texto constitucional.”
De acordo com Fernando Neisser, quem analisa a elegibilidade de um candidato ou candidata é só a Justiça Eleitoral. “Realmente não cabe ao MP fazer esse juízo. O MP decide se vai manter os pagamentos e a pessoa dentro do quadro, ou não. A legislação é muito clara. As pessoas que ingressaram depois de 1988 não têm direito de permanecer no cargo e ser candidatos.”
A Emenda Constitucional 45/2004 é considerada um divisor de águas nas decisões deste tipo de caso. Até sua promulgação, era possível se afastar do Ministério Público, sem a perda de cargo, e continuar recebendo os salários. Mas quem vai se candidatar no exercício do cargo de promotor a partir da Emenda 45/2004 tem de pedir exoneração, segundo o advogado Arthur Rollo, especialista em Direito Eleitoral.
“Já tem entendimento firmado sobre a emenda constitucional 45. Então, até a EC 45/2004 eles podem sair candidatos, e quem entrou depois da EC 45/2004 tem que pedir exoneração. Já tem interpretações a esse respeito. Há, por exemplo, o caso do ministro Alexandre de Moraes que pediu exoneração para poder ser secretário de Estado. Existe essa interpretação já bastante consolidada”, afirmou.
Com informações da Conjur