Em busca de segurança jurídica e eficiência, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) têm promovido um esforço para, com ajuda da tecnologia, estabelecer um sistema de gestão de precedentes conjunto. Esse diálogo é necessário porque há entre as cortes uma natural, porém grave, “zona de penumbra”, cujo impacto jurisprudencial é relevante.
Levantamento no sistema de consulta de recursos repetitivos do STJ mostra que posições firmadas pelo Supremo levaram à revisão de 16 teses vinculantes da corte infraconstitucional (ainda que para reafirmação), além do cancelamento de pelo menos 11 temas, os quais não chegaram a ser julgados no mérito.
Nessa conta entram revisões feitas por julgamentos do STF sob o sistema da repercussão geral, mas também casos de Direito Penal em que o STJ optou por readequar suas teses a partir de vários julgados não vinculantes das turmas do Supremo, com o objetivo de preservar a estabilidade da jurisprudência.
Esse impacto pode aumentar porque há ainda outros nove repetitivos com tese já firmada pelo STJ e aguardando julgamento de recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal, além de enunciados já contrariados pela corte constitucional e que ainda não foram submetidos a revisão.
Longe de ser incomum, a revisão de julgados do STJ pelo STF é apontada como natural devido à dinâmica processual. As cortes têm competências distintas, mas isso não impede que uma questão julgada pelo STJ sob o enfoque infraconstitucional seja reavaliada pelo STF com viés constitucional.
Em evento sobre os 15 anos de implementação da repercussão geral no STF, o ministro Mauro Campbell, do STJ, definiu como absolutamente rotineiro o fato de a corte estar em julgamento e ser informada de algum novo entendimento firmado pelo Supremo. “Adaptamos, não raro em sessão mesmo, os nossos acórdãos. Dizemos: onde estava escrito isso, está agora escrito aquilo que o Supremo disse, e está encerrado o debate”, afirmou. “Isso é um grande serviço que se presta ao jurisdicionado e à cidadania brasileira”, defendeu ele.
Isso é rotina porque o ministro Mauro Campbell integra colegiados que julgam temas de Direito Público no STJ, os mais afetados por decisões do STF. Oito dos nove repetitivos que aguardam julgamento de recurso extraordinário foram firmados pela 1ª Seção. Entre os revisados, são dez em um total de 16.
O impacto
É o caso da chamada desaposentação. Em 2013, o STJ decidiu que não havia impedimento para a revisão do benefício se quem já estava aposentado voltasse a trabalhar e a contribuir para a Previdência Social. Três anos depois, porém, o STF julgou a prática inconstitucional, com tese firmada a afetar, naquele momento, 180 mil processos sobrestados. A revisão de tese no STJ foi feita em 2019.
Outro caso ocorreu em 2017, quando o Supremo decidiu que o ICMS não integra base de cálculo do PIS e da Cofins, em uma derrota que, segundo a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, custaria à União R$ 250 bilhões. A posição foi frontalmente contrária à firmada pelo STJ um ano antes, em 2016. A partir dali, a corte passou quatro anos evitando escolher qual parcela deveria ser excluída da base de cálculo — se a efetivamente devida aos estados ou a destacada na nota fiscal —, até a definição ser feita pelo próprio STF em embargos de declaração, com direito a modulação dos efeitos temporais da tese.
Esse repetitivo, cadastrado como Tema 313 do STJ, não consta entre os revisados. No sistema da corte, há anotação chamando atenção para o definido pelo STF no Tema 69 da repercussão geral. A situação é a mesma do Tema 982, em que o STJ entendia justo o acréscimo de 25% em todas as modalidades de aposentadoria quando for comprovada a necessidade de auxílio permanente de terceiros, posição desautorizada pelo STF em 2021.
Foi para evitar esse tipo de situação que a 1ª Seção cancelou o Tema 1.062, sobre a retroatividade de normas não expressamente retroativas no novo Código Florestal. Em 2018, o STF julgou constitucionais diversos dos dispositivos do código, mas não definiu sua aplicação para situações consolidadas antes de sua vigência — o que ficaria a cargo do STJ. Os julgados da corte nessas controvérsias acabaram gerando reclamações ao Supremo, com decisões em ambas as turmas reconhecendo afronta ao decidido em sede de controle concentrado de constitucionalidade.
No mesmo sentido, o STJ tem admitido embargos de declaração para devolver aos tribunais de segunda instância dezenas de recursos contra condenações por improbidade administrativa. A legislação sobre o tema foi profundamente alterada pela Lei 14.230/2021 e o STF ainda vai se debruçar sobre a sua aplicação retroativa. Para racionalizar o exercício de sua atribuição constitucional, o STJ decidiu tornar sem efeito suas decisões anteriores e aguardar o juízo de conformação.
A zona de penumbra
Para o ministro Sérgio Kukina, do STJ, esse cenário é compreensível, já que a Constituição reserva capítulos densos a determinados temas, como o tributário, o que vai influir na interpretação da lei federal. Ele afirma que as decisões em desacordo de STJ e STF desestabilizam, em alguns momentos, o que aparentemente parecia já ter sido resolvido. “Eu digo que se trata de uma zona enevoada. A gente, às vezes, fica naquela dúvida: será que esse tema é mais constitucional ou infraconstitucional?”, afirmou ele em entrevista ao Anuário da Justiça Brasil 2022.
“Zona de penumbra entre o STJ e o STF” é o título de um livro de um conterrâneo de Kukina, o advogado paranaense e professor da Faculdade de Direito da UFPR Luiz Guilherme Marinoni. Essa penumbra é causada pela falta de distinção entre a função de interpretar a lei nos termos da Constituição e a função de controlar a constitucionalidade da interpretação da lei. Para ele, é um absurdo imaginar que o STJ, ao interpretar a lei, não possa invocar a Constituição como parâmetro ou critério. Ao STF, resta controlar a constitucionalidade do que disser o STJ.
“Ou seja, o STF não tem poder para optar por uma melhor interpretação da lei, ainda que nos termos Constituição, pois isso seria transformá-lo numa corte revisora do STJ, o que seria um absurdo, pois negaria a função de Corte Suprema de ambas as cortes”, explica ele, em entrevista à ConJur. Também por isso, Marinoni defende que o Supremo Tribunal Federal não admita recurso extraordinário sob o argumento de inconstitucionalidade de interpretação de lei federal, quando oriundo de Tribunal de Justiça ou Regional Federal.
“Inclusive para a democratização da interpretação da lei federal, é necessário dar aos tribunais oportunidade de discutir a interpretação da lei e espaço para o STJ formar precedente. É equivocado permitir que o STF analise a constitucionalidade de uma interpretação ainda não consolidada em precedente do STJ”, avalia. “Desse modo, evita-se que o STF seja tentado a interpretar a lei antes do STJ”, conclui o advogado.
Para Marinoni, isso tudo é gerador de insegurança jurídica, uma fonte de angústia que não é ignorada pelos ministros do STJ. Se para os players do cenário jurídico já é complicado explicar, o ministro Kukina tenta imaginar o que dizer ao jurisdicionado cidadão comum. Cria-se um ambiente de instabilidade, que é tudo o que não se deseja em termos de Justiça.
“Esse sistema de dois tribunais para dar a última palavra parece que ainda não achou o seu ponto ideal de convivência, de interação, de integração. Existe ainda uma coisa nessa maquinaria, nesse engenho jurídico, faltando ali um ajuste, um parafuso qualquer para que as coisas não aconteçam em modo de solavanco, como vem acontecendo”, disse o ministro Kukina.
A posição do STF sobre o tema é que a dinâmica processual, em que o recurso especial deve ser julgado antes do recurso extraordinário, aceita esse diálogo entre as cortes, não representando algo incomum no sistema jurídico a reversão de uma decisão do STJ pelo STF. Nem todos os temas vão ter a repercussão geral reconhecida e, com isso, terão no STJ a última instância de julgamento. Os que tiverem repercussão, ao serem analisados pelo Supremo em relação à questão constitucional, terão o entendimento do STJ levado em consideração no debate.
O acordo
Nesse cenário, vem a calhar o acordo de cooperação entre os dois tribunais para racionalização do trâmite de questões repetitivas, o qual já dá resultados. A medida é muito elogiada por ministros do STJ.
Para a ministra Assusete Magalhães, integrante da comissão gestora de precedentes da corte, ele atende à ideia de uma gestão eficiente e dialógica entre as instâncias. “Cabe a todos nós implementar bem, gerir e fazer funcionar esses instrumentos inovadores para fazer funcionar esse sistema em prol de uma máquina judiciária ainda combalida e incapaz de responder adequadamente aos reclamos da sociedade brasileira”, disse ela no evento do STF sobre os 15 anos da repercussão geral.
Diretor-geral do Supremo, o juiz Pedro Felipe Santos destacou no mesmo evento que o compartilhamento de dados entre as cortes por meio da tecnologia permite mapeamento conjunto de ondas de litigiosidade num contexto em que o timing é precioso. “Se tanto o STF como o STJ demoram na identificação de um tema, os processos se avolumam, se multiplicam sem dar resposta efetiva, racional e rápida”, disse ele.
E, em artigo assinado com Marcelo Ornellas Marchiori e publicado na obra do CNJ “Inteligência Artificial e aplicabilidade prática no Direito”, Santos apontou a rejeição da repercussão geral pelo STF como responsável por um relevante aspecto processual: possibilitar que os demais tribunais declarem dentro dos limites de suas competências constitucionais a interpretação da legislação federal ou local, sabendo que a questão não possui status constitucional.
Com informações da Conjur