O crime de abuso sexual em crianças raramente chega à Justiça. Consumado entre quatro paredes, em sua maioria por membros da própria família, é cometido contra uma pessoa vulnerável que, além de desconhecer seus direitos, tampouco sabe se defender.
A ajuda que conseguem, normalmente, é externa. Professores, colegas de escola, profissionais da saúde – que reconhecem marcas do abuso durante a realização de alguma consulta médica – são exemplos de profissionais que não deixam esses crimes cometidos contra as crianças ficarem impunes.
Na cidade de Nova Mutum (MT), a 264 km de Cuiabá, a promotora de Justiça Ana Carolina Rodrigues Alves Fernandes percebeu que havia um descompasso entre a realidade da cidade de pouco mais de 50 mil habitantes e os poucos casos que chegavam ao Ministério Público. “Claramente havia subnotificação desses crimes. Em um ano, chegamos a ter apenas 18 casos registrados.”
Junto com o colega Henrique de Carvalho Pugliesi, ela reuniu representantes das polícias, do Conselho Tutelar, educadores e educadoras e profissionais da saúde para ver como poderiam melhorar o atendimento e reduzir a impunidade. Em 2018, criaram juntos o Projeto Luz, que unificou a rede de proteção da criança para melhorar o acesso ao atendimento, conferindo ações integradas na área de saúde, educação, assistência social e segurança.
A iniciativa também passou a conferir mais transparência nesses atendimentos e, com pouco mais de dois anos de funcionamento, começou a receber quase que diariamente informações importantes que levavam aos casos de abuso que vinham ocorrendo de maneira silenciosa, como é a praxe nesse contexto.
Com pouco tempo de atividade, o projeto já conseguiu levar à Justiça os autores desses crimes e tem conseguido acolher as vítimas de maneira mais humanizada e efetiva. No caso de meninas gestantes, por exemplo, além de verificar se houve ou não crime sexual, o atendimento também busca incluí-las em ações de saúde ou mesmo de atendimento psicossocial.
“O atendimento em rede reduziu os casos de impunidade. Nem todos as suspeitas que chegam até nós se confirmam, mas elas chegam. Não ficam mais nas sombras. Isso inibe os criminosos, que sabem não haver mais o silêncio de antes”, diz a Ana Carolina. No ano passado, a iniciativa recebeu um importante incentivo: venceu o 1º Prêmio Prioridade Absoluta do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na categoria Sistema de Justiça, Eixo Protetivo.
A premiação foi dirigida ao aplicativo para celular do Projeto Luz que, em 2020, começou a ser utilizado pelos profissionais da Rede de Proteção vinculada à ação. Também idealizada pelos promotores de Nova Mutum, a ferramenta possibilita que notificações sobre casos de violência sexual contra crianças e adolescentes sejam instantaneamente informadas aos integrantes da rede.
Por meio do aplicativo, também desenhado com ajuda da promotora Daniele Crema da Rocha de Souza, é possível enviar arquivos em imagem dos documentos que normalmente acompanham o registro, como exame de corpo de delito, formulário da notificação, boletim de ocorrência, fotografias, entre outros. Apenas as autoridades recebem os documentos, tratados de maneira sigilosa.
“Quem está na ponta deve trazer o caso até as autoridades. O professor, por exemplo, se percebe algo de errado com uma criança, deve notificar a Secretaria de Educação. A mesma coisa acontece com o profissional de saúde. A função é repassar o que viram ou escutaram. As autoridades de Justiça, comandantes da PM, secretários de saúde, de educação ou de assistência social inserem o caso no aplicativo e no grupo do WhatsApp e iniciam o acompanhamento, em geral, com ajuda do Conselho Tutelar”, explica a promotora.
Para o titular da Procuradoria de Justiça Especializada na Defesa da Criança e do Adolescente, Paulo Roberto Jorge do Prado, a criação da ferramenta é um importante passo na proteção de crianças ou adolescentes vítimas ou que tenham testemunhado ações de violência. “Por meio dela todos estão se comunicando, dialogando, protegendo esses jovens. Acredito que em breve essa iniciativa será compartilhada com outras comarcas para atuação mais célere e efetiva em relação a esses crimes que, infelizmente, estão presentes em todas as camadas sociais”, disse.
Subnotificação
Dados do Projeto Luz revelaram que de 2020 (quando o aplicativo começou a funcionar) até dezembro de 2021 houve 237 notificações de casos suspeitos de crimes sexuais contra crianças ou adolescentes na cidade. Em anos anteriores, segundo a promotora, esse número não chegava a 20 ocorrências.
O Projeto Luz foi criado em 2018, logo após a Lei 13.341/2017 entrar em vigor. A integração dos profissionais da rede de proteção está prevista na norma, que não apenas disciplinou essa questão, mas também tratou do depoimento especial de crianças vítimas ou testemunhas de violência. O projeto prevê a capacitação dos profissionais que lidam com crianças e adolescentes, o que – na visão dos promotores idealizadores da ação – contribuiu para reduzir a subnotificação.
Vale ressaltar que nem todos os casos analisados resultaram em abertura de processo. Dos 237 registros, 136 foram arquivados e 101 encaminhados à Justiça. Desde 2020, também já foram concedidas 224 medidas de proteção para crianças, jovens ou familiares a pedido do projeto, como acompanhamento de saúde, psicológico para a vítima, assistência para a família, e também medidas de afastamento do agressor. Essa última é praticamente uma regra, uma vez que a maior parte dos casos de abusos e crimes sexuais ocorrem dentro da família.
Com informações do CNJ