As instituições de Justiça que atuam no caso Samarco – Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG), Ministério Público do Estado do Espírito Santo (MPES), Defensoria Pública da União (DPU), Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais (DPMG) e Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo (DPES) – peticionaram, em conjunto, ao Juízo da 4ª Vara Federal de Belo Horizonte (MG) pedindo o julgamento antecipado de parte do mérito das ações civis públicas que buscam a reparação completa dos danos ambientais e socioeconômicos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em novembro de 2015.
Considerado o maior e mais grave desastre ambiental já ocorrido no país e um dos maiores do mundo, o rompimento da barragem de Fundão, de propriedade da mineradora Samarco, joint venture das gigantes da mineração BHP Billinton e Vale, matou 19 pessoas e, ao despejar mais de 40 milhões de m³ de rejeitos no Rio Doce e afluentes, devastou área de cerca de 32 mil km², atingindo, direta e indiretamente, 49 municípios situados a partir do local do rompimento, em Mariana (MG), até a foz do Rio Doce, em Linhares (ES), onde alcançou o Oceano Atlântico.
Com o intuito de buscar reparação e compensação pelos danos, foram ajuizadas duas ações civis públicas principais (depois reunidas em um só processo), ambas requerendo a condenação solidária das empresas causadoras do desastre. No curso dessas ações e há cerca de anos, o Juízo Federal desmembrou o processo por diversos temas (12 no total), que chamou de eixos prioritários (Saúde, Alimentação Adequada, Moradia, etc.), instaurando nova ação para cada um deles.
Paralelamente a essa tramitação judicial, especialistas contratados para assessorar o MPF efetuaram amplo diagnóstico dos danos socioambientais e socioeconômicos resultantes da poluição causada pelo rompimento de Fundão. Foram realizados também perícias judiciais e estudos conduzidos pelo Comitê Interfederativo (CIF) e pela Fundação Renova.
De acordo com as instituições de Justiça, alguns dos achados dos experts e dos demais estudos acabaram integrando o conteúdo de decisões proferidas no processo e foram legitimados pelas próprias rés, como é o caso do direito a indenizações segundo as matrizes de danos previstas no chamado Sistema Indenizatório Simplificado (Novel), que reconheceu determinadas categorias afetadas pelo desastre e seu direito a indenizações por questões relacionadas ao trabalho e à alimentação adequada. Ou seja, por meio do Novel, foram expressamente reconhecidos danos socioambientais e socioeconômicos, com subsequente pagamento de indenizações pelas rés sem a interposição de recurso, o que tornou esses danos incontestáveis.
“É com esse entendimento – de que já existem fatos maduros para um julgamento pelo menos parcial do processo – que as instituições de Justiça resolveram pleitear ao Juízo a análise final do mérito de alguns dos pedidos feitos nas ações civis públicas, até porque, conforme demonstramos na petição, é preciso levar em conta que a legislação brasileira reconhece a duração razoável do processo como requisito indispensável do respeito aos direitos humanos das pessoas envolvidas. Passados quase oito anos do desastre, entendemos que é preciso colocar um ponto final pelo menos com relação às indenizações por dano moral coletivo, danos sociais e em relação aos direitos individuais homogêneos, sob pena de negativa da prestação jurisdicional”, explica o procurador da República Carlos Bruno Ferreira da Silva.
Efeito preventivo – Autorizado pelo artigo 356 do Código de Processo Civil, o julgamento antecipado parcial do mérito pode se dar, segundo as instituições de Justiça, com relação a pedidos que não exigem mais produção de outras provas. É o caso, por exemplo, dos danos imateriais e morais causados à coletividade, danos sociais e dos danos materiais e extrapatrimoniais causados aos indivíduos e grupos afetados, os quais decorrem do fato em si (rompimento da barragem e consequente devastação) e que precisam ser indenizados por força do Princípio da Reparação Integral.
A petição cita julgados do Superior Tribunal de Justiça (STJ) segundo os quais, em síntese, o dano moral coletivo decorre diretamente da violação do direito de toda a coletividade a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Isso porque o bem ambiental é imensurável, não tem valor patrimonial, e, quando ele é lesado, toda a coletividade é que sofre o dano, não sendo necessário apresentar prova direta de dor, sofrimento ou abalo psicológico.
As instituições de Justiça argumentam que é evidente e já foi suficientemente comprovada nos autos a lesão à coletividade causada pelo desastre, tornando possível o julgamento antecipado dessa demanda específica. Lembram, ainda, que tal condenação teria efeito preventivo e pedagógico, na medida em que “uma empresa só praticará um ato ilícito e lesivo se os benefícios decorrentes do ato forem maiores do que os custos”.
Em termos de danos difusos, a petição ainda destaca que também os danos sociais devem ser indenizados como categoria diversa da dos danos morais coletivos. “O ponto central da verificação do dano social é a experimentação, por toda a sociedade, do nível de vida e do patrimônio extrapatrimonial da população. No caso, a configuração do dano social é verificável pela precarização da qualidade de vida, prejuízos econômicos, violação a direitos como lazer, educação e cultura, o que impactou negativamente toda a sociedade e, em especial, a população residente nos municípios atingidos pelo desastre”.
Valor da indenização – Lembrando que “a condenação ao pagamento de valor a título de indenização pelo dano extrapatrimonial coletivo deve guardar relação com a monta e alcance do desastre”, as instituições de Justiça, ao destacarem a magnitude dos danos que atingiram população estimada em mais de 2 milhões de pessoas, afirmam que o valor da indenização, para ter função dissuasória, deve considerar a capacidade econômica das empresas envolvidas, duas delas a maior (BHP) e a segunda maior (Vale) mineradoras do mundo, com lucros líquidos da ordem de centenas de bilhões de reais desde o desastre.
De acordo com a petição, “da análise de suas demonstrações financeiras, depreende-se que os atos ilícitos não foram capazes de retirar seus status de grandes agentes econômicos ou de reduzir suas capacidades financeiras. Pelo contrário, as empresas poluidoras seguem em franco processo de expansão nos últimos anos (com elevado lucro líquido e dividendos distribuídos), o que denota que nem os efeitos da interrupção das atividades das minas onde ocorreram os rompimentos ou os processos de apuração de responsabilidades e reparação foram capazes de alterar a pujança econômica das referidas mineradoras”.
Nesse contexto, pede-se que as empresas poluidoras (Samarco, Vale e BHP) sejam condenadas ao pagamento de danos extrapatrimoniais coletivos em valor a ser arbitrado pelo Juízo com base no lucro líquido das empresas poluidoras Vale e BHP nos últimos três anos, em patamar não inferior a 20%, ou, ainda, por outro método, tomando-se por base o valor atribuído à causa (R$ 155 bilhões), atualizado, condenando-se em patamar não inferior a 30%, ou, por fim, adotando-se outro parâmetro que o magistrado “entender como mais adequado à integral reparação do dano, considerando-se a extensão e gravidade do dano, o tempo decorrido entre o dano e a recuperação ou compensação ambiental, e o caráter pedagógico da indenização, neste ponto incluída a capacidade econômica das empresas”.
Pessoas afetadas – Na categoria de direitos individuais homogêneos, o pedido de julgamento antecipado funda-se, entre outros argumentos, especialmente no fato de determinadas matrizes de danos terem gerado o pagamento de indenizações a pessoas atingidas, sem contestação judicial pelas empresas rés.
A partir desse cenário, as instituições de Justiça ressaltam que, no julgamento desse pedido, é necessário que estejam “compreendidos todos os atingidos, incluindo-se as pessoas naturais/físicas e jurídicas que tiveram suas atividades produtivas e econômicas impactadas, em violação aos direitos fundamentais/sociais ao trabalho e à alimentação adequada; os moradores-residentes de todas as regiões atingidas que tiveram seus quintais invadidos pela lama de rejeitos, bem como os respectivos conviventes diretos (parentes em linha reta ou colateral até 2º grau, inclusive); bem como, mas não somente, pessoas que sofreram o denominado ‘Dano Água’, isto é, que tiveram a interrupção do serviço público essencial de abastecimento de água potável encanada”.
Como parâmetro para identificar as categorias atingidas e os elementos indenizáveis, sugere-se ao Juízo a adoção da Matriz Indenizatória Geral, criada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) a pedido do MPF, que estabeleceu critérios mínimos para compensação de danos socioeconômicos relacionados a renda, trabalho, subsistência e saúde (exposição ao risco). Essa matriz detalha como os danos são identificados, inclusive diferenciando-os por região territorial, e como as indenizações por perdas materiais e imateriais são calculadas, incluindo os parâmetros de prova.
De forma geral, a petição pede que o Juízo condene as empresas rés a pagarem a indenização pelos danos materiais individuais homogêneos (contemplando-se danos emergentes e lucros cessantes) correspondentes aos direitos individuais incontestes, devendo os valores indenizatórios serem fixados conforme as Matrizes Indenizatórias da FGV para definição do quantum indenizatório, como patamar mínimo, ou conforme as matrizes judicialmente estabelecidas para o Novel como patamar mínimo, em benefício das categorias já identificadas pelo Juízo ou numa mescla entre esses dois parâmetros, fixando-se, no mínimo, as categorias atingidas e os elementos indenizáveis.
Para as instituições de Justiça, o fato de o Juízo da 4ª Vara Federal ter recentemente extinguido o Novel não elide o fato de que houve, durante a existência desse sistema indenizatório, reconhecimento expresso de determinados direitos individuais homogêneos pelas empresas rés.
Em qualquer caso, pede-se também que seja assegurada às pessoas atingidas, por ocasião da execução individual de eventual sentença genérica condenatória, a incidência da súmula 54 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que prevê o pagamento de juros de mora a partir da data do evento danoso.