Com a Lei Geral de Proteção de Dados entrando em vigor, muito se especula sobre como será a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), agência regulatória prevista na lei para fiscalizar e orientar sobre o tema.
Nesse contexto, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) produziu um estudo de 44 páginas (ainda não divulgado) defendendo a ideia. Um dos argumentos é de que isso aceleraria o início das operações da ANPD, que poderia acontecer já em janeiro de 2021, além de gerar economia para os cofres públicos.
Mas a ideia não agrada a muitos dos advogados que já trabalham com o tema. De acordo com Alex Santos, advogado especializado em tecnologia e sócio do Nascimento & Mourão Advogados, um dos pilares da regulação da proteção de dados pessoais é garantir total independência da Autoridade Nacional responsável por definir diretrizes, educar, fiscalizar e punir infrações.
“Essa preocupação evita a ocorrência de interferências externas, principalmente políticas, no exercício das atribuições da Autoridade Nacional. Assim, a proposta do Cade implicaria um distanciamento e, de certa forma, uma incompatibilidade sistêmica com relação às principais regulações internacionais sobre o tema, tais como o Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia (GDPR)”, afirma Santos.
Para o advogado Wilson Sales Belchior, sócio de Rocha Marinho E Sales Advogados, operações de M&A em setores da economia digital evidenciam a interseção entre tratamento de dados pessoais e defesa da concorrência. “No entanto, os encadeamentos das competências da ANPD em consonância com o alto nível de especialização exigido abrangem leque mais amplo de setores e negócios. Este fato afasta a avaliação dessa proposta apenas sob a perspectiva estritamente econômica, no que toca aos custos necessários para implementação da Autoridade. É certo que deve ser estimulada a coordenação das atividades da ANPD com as autarquias federais responsáveis pela regulação de setores específicos, ao mesmo tempo em que se prioriza a concretização da autonomia, independência e infraestrutura necessárias para estruturar fiscalização efetiva pela Autoridade”.
Marina de Almeida Santos Dias, especialista em compliance e associada de Damiani Sociedade de Advogados, entende que o estudo do Cade revela uma leitura míope da lei. “O texto legislativo dedica mais da metade de seus dispositivos a mecanismos de prevenção de abusos, sendo o mais relevante deles a previsão de independência e autonomia da ANPD para exercer com imparcialidade sua função garantista”. Para a advogada, o flagrante conflito entre a função precípua do Cade e da ANPD “comprometeria sensivelmente a amplitude das atribuições da Autoridade.
Voz em favor
Porém nem todos são contra a ideia. Luiz Felipe Rosa Ramos, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), CIPP/E e co-head de Proteção de Dados da Advocacia José Del Chiaro, afirma que o Cade tem credibilidade e experiência notórias, que adquiriu após anos atuando com excelência e o habilitam a propor a incorporação da proteção de dados entre suas competências.
“Não seria ‘jabuticaba’ brasileira: outras agências no mundo, como o FTC norte-americano, acumulam as funções. No entanto, é preciso notar que as políticas de concorrência e de proteção de dados, em que pesem as sinergias, possuem lógicas próprias, que podem entrar em conflito. Uma eventual unificação das políticas no Cade teria de ser acompanhada de mecanismos que garantam que a racionalidade da política concorrencial não seja descaracterizada pela lógica da proteção de dados, ou o contrário, sob pena de prejudicar a excelência em ambas”, diz Ramos.
Melhor cada um na sua
O advogado Pedro Zanotta, sócio da área Concorrencial do WZ Advogados, lembra que o Cade é responsável pela prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica e por isso já consolidado como uma autarquia eficiente e com reconhecido destaque nacional e internacional. Mas ressalta que a nova agência pode demandar mais do que o Cade posso suportar com a estrutural atual.
“Essa incorporação de funções deverá trazer aumento de equipe no Cade, como consta da proposta, mas o julgamento das sanções a serem aplicadas, em decorrência da LGPD, será pelo mesmo Tribunal e pelos mesmos conselheiros que hoje se dedicam apenas à defesa da concorrência. Têm eles a expertise necessária para atuar em outra matéria, diferente daquela para a qual foram sabatinados pelo Senado? Com todos esses pontos de dúvida, o Cade deveria manter a sua vocação natural e não agregar tarefas que não se sabe se poderá cumprir com a mesma eficácia”.