Protagonista na solução de conflitos, o Poder Judiciário tem investido no desenvolvimento de ferramentas de inteligência artificial (IA). Como objetivo de descobrir qual o nível alcançado pelos tribunais brasileiros sobre o tema, a Fundação Getúlio Vargas (FGV) realizou um raio-x de todas as experiências e soluções em relação ao uso das novas tecnologias na Justiça.
Os primeiros resultados da pesquisa “Tecnologias Aplicadas à Gestão de Conflitos no Poder Judiciário com ênfase no uso da inteligência artificial” foram apresentados em um webinar que reuniu magistrados, pesquisadores e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Entre fevereiro e agosto de 2020, o Judiciário contava com 64 projetos de IA em funcionamento ou em processo de implantação, em 47 tribunais do país, além da Plataforma Sinapses do CNJ.
“Metade dos tribunais têm um projeto de inteligência artificial implantado ou em implantação. O desenvolvimento dessas tecnologias é um dos instrumentos mais importantes de gestão no Judiciário, uma vez que implica em racionalizar recursos, mão de obra e atividades, diante de uma demanda cada vez mais crescente”, afirmou o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão, coordenador do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário, da FGV.
Desafio
O desafio é imenso. Há mais de 77 milhões de processos em tramitação na Justiça, o que corresponde a um processo para quase três habitantes. O Brasil possui uma das maiores cargas de trabalho na Justiça do mundo. São 6.962 processos por juiz e uma elevada taxa de congestionamento, 68,5%, segundo dados compilados do Relatório Justiça em Números 2020, elaborado pelo CNJ.
“Em um país recordista em judicialização, as ferramentas que utilizam inteligência artificial são instrumentos de gestão muito promissor”, afirmou a pesquisadora colaboradora Renata Braga, durante apresentação de detalhes do levantamento.
Exemplos
Um exemplo de tecnologia de IA que vem contribuindo ainda na fase piloto para a Justiça e citado pela pesquisadora é o Sistema Mandamus, do Tribunal de Justiça de Roraima (TJ-RR) em parceria com o CNJ, voltado para o cumprimento dos mandados, por meio de automação e distribuição eletrônica desses documentos.
O sistema informatiza o ciclo de funcionamento, desde a expedição do mandado, passando pelo acompanhamento (com um geolocalizador, para a chegada segura), finalizando com a assinatura e certidão digital do processo.
“Além de você ampliar o banco de dados, ampliar a eficiência dos mandados, tem uma questão de sustentabilidade também, pois elimina consumo de papel e tinta, gastos com combustível, redução da sobrecarga dos servidores com retrabalho, manual e repetitivo. É um exemplo de racionalização dos gastos públicos”, disse Renata Braga.
O secretário especial de Programas, Pesquisas e Gestão Estratégica do CNJ, Marcus Lívio Gomes, ressaltou que o Sinapses, fruto de parceria entre o CNJ e o Tribunal de Justiça de Rondônia (TJ-RO) para ser uma plataforma voltada para o desenvolvimento e a disponibilidade em larga escala de modelos de IA, permitirá que esses projetos sejam compartilhados e utilizados por outros tribunais.
“Estamos estimulando que cada tribunal desenvolva micro serviços que irão integrar a Plataforma Digital do Poder Judiciário (PDPJ) a fim de possibilitar que essas iniciativas dos tribunais sejam utilizadas por todos os tribunais do Brasil. O PDPJ é o motor de digitalização do Judiciário brasileiro e será uma espécie de JudStore (fazendo referência à app store), onde os programas desenvolvidos pelos tribunais estarão disponibilizados aos tribunais que aderirem a esse sistema”, disse.
Marco
O ano de 2020, aponta Juliana Loss, coordenadora executiva e pesquisadora da FGV/Conhecimento, é um divisor de águas em termos normativos. Na liderança desse processo está o CNJ, que vem orientando toda a Justiça na via digital, virtual e remota.
A pesquisa aponta a importância dos atos normativos editados pelo Conselho, principalmente a Resolução CNJ nº 335, que estabeleceu a política pública para governança e gestão do processo judicial eletrônico; a de nº 345, que dispõe sobre o Juízo 100% Digital; a Resolução CNJ nº 358, que regulamenta a criação de soluções tecnológicas para a resolução de conflitos por meio da conciliação e mediação; e a Portaria CNJ nº 242, que institui o Comitê de Segurança Cibernética do Judiciário.
A pesquisa é uma das formas de acompanhamento e promoção da meta referente ao ODS 16, da Agenda das Nações Unidas para os próximos 10 anos, no que diz respeito a proporcionar o acesso à justiça a todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.
Inovação e dados abertos
A juíza do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2), Caroline Tauk, ressaltou a importância da abertura e da transparência de dados no Judiciário para a criação das muitas inovações conquistadas até hoje. “A open justice é a abertura da Justiça em relação a dados produzidos. Para inovar, é preciso ter acesso às informações, e para isso, eles precisam ser abertos e operáveis (comunicáveis) entre si”, afirmou.
E, advertiu a magistrada, mesmo com abertura de informação, o direito à intimidade precisa estar assegurado. “Temos transparência e também respeitamos a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Não são coisas excludentes. O CNJ tem a Resolução 333, que já define quais são os dados processuais que são e devem ser abertos.”
“Tanto em termos de manuseio de dados, como na produção de softwares, assim como nos instrumentos de proteção e resguardo da ética em relação ao uso da IA, o Judiciário brasileiro está na vanguarda”, afirmou Marcus Lívio Gomes, ao ressaltar que o Programa Justiça 4.0, lançado em 24 de fevereiro pelo presidente do CNJ, ministro Luiz Fux, pretende desenvolver ações, estudos e estratégias para ampliar a prestação jurisdicional e facilitar o acesso à Justiça no país.
“É impossível falarmos em abordar big data (massa de dados) e desenvolvimento de produtos de IA sem falarmos em ética. Basta tomarmos como exemplo o que acontece com as empresas de mídias sociais e as plataformas de tecnologia que mineram esses dados por meio de softwares inteligentes”, disse o magistrado, que afirmou que o DataJud, do CNJ, possui 330 milhões de processos em sua base, desde 2015. “É um big data do Poder Judiciário e há muitos interessados nesses dados.”
“Temos informações que podem ajudar a formular políticas públicas e, por outro lado, a necessidade de preservar milhões de dados pessoais. Para conciliar isso, o CNJ respeita princípios internacionais e nacionais e, por meio da Resolução n. 332, incluiu a ética, transparência e segurança cibernética no uso da IA”, completou o magistrado, que defendeu um controle social efetivo dessas políticas.
A pesquisa abrangeu os tribunais regionais do trabalho, os tribunais regionais federais, os tribunais de Justiça, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), o Tribunal Superior do Trabalho (TST) e o Supremo Tribunal Federal (STF), além do próprio CNJ. Este ano, a pesquisa atualizará os dados analisados, ampliará as variáveis verificadas (maior cruzamentos de dados) e estudará, também, projetos que utilizem inteligência computacional. A ideia ainda é avaliar o impacto produzido pelo uso da IA e fazer uma análise cruzada desses dados.
Com informações do CNJ