A decisão da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que estabeleceu que a incorporação da pessoa jurídica acusada de crime ambiental deve levar à extinção da punibilidade, pois não há norma que autorize a transferência dessa responsabilidade penal à empresa incorporadora, já provoca discordâncias no meio jurídico. E o assunto poderá chegar ao Supremo Tribunal Federal, de acordo com especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.
Se a pessoa jurídica é extinta de forma lícita ao ser incorporada por outra empresa, aplica-se analogicamente o artigo 107, inciso I, do Código Penal, com a extinção da punibilidade, conforme defendeu o relator da matéria, ministro Ribeiro Dantas. Ele foi seguido por outros quatro ministros na votação, que terminou com diferença de apenas um voto (5 a 4).
No julgamento, a divergência foi aberta pelo ministro Joel Ilan Paciornik, que refutou a equiparação da extinção da personalidade jurídica à morte de uma pessoa que é acusada ou condenada por um crime. Para ele, isso só seria tecnicamente possível se a empresa fosse dissolvida e liquidada.
Paulo Murilo Galvão, especialista em Direito Ambiental Criminal e cuja dissertação de mestrado tratou sobre a ineficácia da responsabilidade penal da pessoa jurídica por crimes ambientais, é dos que acreditam que o assunto chegará ao STF. Contudo, ele se mostra favorável à decisão proferida pelo STJ.
“Se a extinção da empresa não for fraudulenta, deve ser extinta a punibilidade. A decisão do relator foi perfeita, porque uma ação se fundiu na outra. Pelo princípio da intranscendência, ninguém pode responder pelo crime de outra pessoa. Se assim pudesse, estaria a outra empresa respondendo por um crime que ela não praticou. Está correto o julgamento do STJ”, analisa Galvão.
Contudo, para um advogado que atua na área ambiental e prefere não ser identificado, a aplicação da intranscedência da pena às pessoas jurídicas, se levada ao Supremo, resultará em entendimento oposto ao adotado pelo STJ.
Ele discorda da impossibilidade de transferir para a nova companhia as responsabilidades, obrigações e restrições determinadas por condenações por crimes ambientais, pois, por serem de natureza jurídica diversa da pessoa natural, os entes coletivos sofrem transformações jurídico-societárias constantemente, não havendo, portanto, impedimento para que respondam penalmente pelos crimes da empresa incorporada.
“Se os danos ambientais deverão ser civilmente ressarcidos pelo incorporador, por que não seguir respondendo pelas penas de natureza administrativa e restritivas impostas pela condenação criminal?”, questiona o advogado.
“Acredito que, levada a discussão ao STF, prevalecerá o entendimento contrário. Assim penso em função da teoria da culpabilidade coorporativa, que já é utilizada em outros países e adotada pelo STF, pela qual o ente corporativo ou coletivo responderá criminalmente independentemente da culpabilidade dos seus representantes, não havendo necessidade de dupla imputação de responsabilidade”, explica o especialista em Direito Ambiental ao se referir ao artigo 225, parágrafo 3º, da Constituição Federal, que “não condiciona a responsabilidade penal da pessoa jurídica por crimes ambientais à simultânea persecução penal da pessoa física em tese responsável no âmbito da empresa. A norma constitucional não impõe a necessária imputação”.
“Por esse entendimento, diferencia-se corretamente a pessoa natural da pessoa jurídica, de tal modo a entender o fenômeno da incorporação não como morte, mas como transformação da pessoa jurídica incorporada, e cujas obrigações sociais deverão ser preservadas e assumidas pelo incorporador”, completa ele.
Helena Pinheiro Della Torre, outra especialista em Direito Ambiental, avalia que a decisão do STJ pode “no mínimo, tumultuar o processo”. Mas ela observa que, quando houver boa-fé, o processo será resolvido facilmente.
A especialista explica que na área ambiental há dois tipos de responsabilidade: uma subjetiva, nas esferas administrativa e criminal; e uma objetiva, que permite a reparação de danos, que segue a causa independentemente de quem provoca o dano ambiental. “A incorporação de uma empresa não transfere a responsabilidade criminal”, destaca ela. Sobre a boa-fé a ser seguida na fase pós-incorporação, a advogada acredita que o novo incorporador poderá absorver, por exemplo, o passivo trabalhista.
Entendimento contrário ao do STJ também é explicitado por um advogado que atuou em casos de desastres ambientais em Minas Gerais e também prefere não se identificar.
“Realmente me parece um equívoco considerar extinta a punibilidade da empresa penalmente condenada, em casos como o que é objeto da decisão do STJ no REsp 1977172/PR. Assiste inteira razão ao ministro Rogério Schietti, e no tocante aos outros argumentos dos demais ministros que ficaram vencidos, ao considerar que a posição majoritária confere aos administradores o poder de decidir não manter a existência da pessoa jurídica diante de uma condenação penal. Em outras palavras e em última análise, teriam tais administradores a disponibilidade de interferir na aplicação da lei penal e na própria punibilidade, embora se trate de uma prerrogativa estatal, dela dispondo como se tratasse de mero ato potestativo.”
Ainda sobre o entendimento que questiona a vitória da não punibilidade da pessoa jurídica numa incorporação, Helder Moroni Câmara, sócio do escritório PMMF Advogados, analisa que a decisão do STJ “é no mínimo questionável”.
Câmara diz não ser razoável comparar a morte da pessoa física à morte da pessoa jurídica, como foi defendido durante o julgamento, pois, segundo ele, a pessoa física existe no mundo natural, palpável, enquanto uma pessoa jurídica é uma ficção criada pelo homem. “Não dá para comparar. Chegar a essa decisão do STJ me parece ser fruto de uma falsa simetria, não dá para comparar as coisas”.
O segundo ponto importante destacado por Câmara é que a pessoa física, quando morre, deixa de existir por completo. Já uma pessoa jurídica, por outro lado, não é formada só da personalidade do CNPJ. Existem outros elementos que compõem a pessoa jurídica, e eles podem sobreviver à sua morte, como o fundo de comércio.
“Assim, a decisão do STJ se baseou numa falsa simetria, numa falsa comparação entre coisas que são incomparáveis. São conceitos e realidades absolutamente incomparáveis. Depois da morte da pessoa jurídica, diversos elementos que a compõem vão sobreviver. Parece-me que numa incorporação, mesmo havendo a extinção de uma personalidade jurídica, como diversos elementos sobrevivem, como o fundo de comércio, deveria sobreviver também a responsabilidade penal. Assim, é possível questionar a decisão do STJ em relação ao caso concreto julgado. É possível que a pena recaia sobre esses elementos que sobreviverão à extinção do nome da pessoa jurídica”.
Câmara também chama a atenção para as consequências provocadas pelo prevalecimento do entendimento do STJ n matéria: “Podemos acabar verificando em casos de condenação penal por crimes ambientais de pessoa jurídica um movimento de realização de incorporações diversas para fim da extinção da punibilidade”.
Favorável
Por outro lado, a decisão do STJ, para Mauricio Lins Ferraz, do Lins Ferraz Advocacia, “é irrepreensível e deve ser louvada”. “Cuidando-se de responsabilidade penal da pessoa jurídica, sua extinção necessariamente leva à extinção da punibilidade, com fundamento do inciso I do artigo 107, do Código Penal”, defende o criminalista.
Ferraz afirma que só se pode cogitar a punição penal de uma empresa que ainda exista, muito embora outros efeitos, como a obrigação civil de reparação do dano, possam se manter. “Decorre exatamente do caráter penal da sanção (essencialmente punitivo) e das peculiaridades que tornam a pessoa jurídica passível de responsabilidade penal. Assim também decorre da impossibilidade de extensão da pena para além da pessoa jurídica punida e ainda porque, com a incorporação, a empresa deixa de existir, e, ainda que passe a integrar outra, certo é que essa última não respondeu ao processo penal respectivo e, portanto, não exerceu seu direito de defesa, pelo que não pode ser igualmente penalizada. Acrescento que as possibilidades cogitadas, pelos votos vencidos, de artifícios para inibir a punição penal, mostram-se casuísticas e, ainda que potencialmente danosas, não podem justificar a não aplicação da lei”, diz o advogado.
Também há concordância com a extinção da punibilidade após a incorporação por Rafael Canterji, sócio do escritório Silveiro Advogados, professor de Direito Penal da PUC-RS e conselheiro federal da OAB.
“No momento em que se decide aplicar o Direito Penal às empresas nos crimes ambientais, deve-se ter plena ciência das peculiaridades do mundo corporativo. Não podem as empresas serem impedidas de efetivarem os negócios que são, na visão de quem as dirige, estratégicos e adequados. Se assim o fosse, a pena estaria sendo outra além das legalmente previstas. Por outro lado, a pena não pode ser transferida de uma pessoa, seja física, seja jurídica, para outra. Dessa forma, em se tratando de incorporação lícita, o efeito jurídico será a extinção da punibilidade, tal qual na morte da pessoa física”, explica Canterji.
Com informações da Conjur