A condescendência do Sistema de Justiça brasileiro com a discriminação racial e a impunidade de quem comete o crime estão entre os pontos evidenciados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no relatório final da investigação do caso Simone André Diniz vs. Estado Brasileiro. Segundo o documento, “uma análise do racismo através do Poder Judiciário poderia levar à falsa impressão de que no Brasil não ocorrem práticas discriminatórias”. Entre os fatores que barram a aplicação de leis antirracistas está o racismo institucional, que, como destaca o relatório, perpassa prova testemunhal, inquérito policial e se estende até a decisão do Judiciário.
Enfrentar o problema, na opinião de muitos operadores do Direito, passa pelo aumento da representatividade negra no Sistema de Justiça. O tema ganhou destaque no último dia do “Seminário Nacional Simone André Diniz: justiça, segurança pública e antirracismo”, realizado no Tribunal Superior do Trabalho (TST).
“Definitivamente, precisamos de uma magistratura em que a sociedade se reconheça. Do contrário, ela não será capaz de angariar a confiança da sociedade e, pior que isso, não será capaz de se colocar no lugar do outro nem de decidir com justiça e sensibilidade”, defendeu o presidente do TST, ministro Lelio Bentes Corrêa, no encerramento do evento.
Negras e negros no Poder Judiciário
Conforme levantamento do Conselho Nacional de Justiça, apenas 12,8% dos magistrados no Brasil são negros. Entre os servidores, o percentual é de 30%. Durante o seminário, foram apresentadas medidas adotadas para elevar a representatividade negra no Poder Judiciário, entre elas a Resolução 203/2015 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que reserva 20% das vagas em concursos para a magistratura a pessoas negras. Com a medida, o percentual de magistrados e magistradas e de servidores e servidoras negros passou de 12% entre 2013 e 2015 para 20% entre 2016 e 2018.
Contudo, mais da metade da população brasileira é preta ou parda, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Elevar a representatividade dessas pessoas nos espaços institucionais do Sistema de Justiça, assim, segue sendo um desafio.
Para a juíza auxiliar da Presidência do CNJ e integrante do Observatório de Direitos Humanos do órgão, Karen Batista de Souza, ele abrange não somente o ingresso dessas pessoas nos cargos públicos, mas também medidas que ampliem sua participação em processos, projetos e iniciativas dentro das instituições. “Precisamos caminhar para criação de instrumentos que viabilizem ações concretas para identificação, prevenção e superação da discriminação institucional no âmbito de todos os Tribunais da Federação e para a eliminação de todas formas de discriminação”, sustentou
Letramento antirracista
Para a promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia Livia Vaz, a sub-representação, ou a quase ausência de pessoas negras no Sistema Judiciário, interfere na forma de construir Justiça. “Por isso, devem ser tomadas medidas que abram espaço para a diversidade e a pluralidade de perspectiva”, afirmou. Ela também defendeu a implementação de um “letramento racial e antirracista” na formação continuada dos membros das diferentes instituições. “Não há como servir a um público que não conhecemos”, defendeu.
A presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, Silvia Souza, também ressaltou a necessidade de reconhecer que não existe neutralidade na aplicação do Direito. Para ela, a magistratura precisa olhar para as relações da sociedade e operacionalizar o direito com um viés antirracista, que comporte os contextos sociais históricos de operessão. Enfatizou a importância da implementação das 12 recomendações do caso de Simone Diniz, para que, assim, o Judiciário possa avançar e servir a sociedade de forma justa, adequada e antirracista.
Amparo à vítima
Além de ampliar a representatividade negra, também é preciso efetivar o acesso das vítimas aos seus direitos quando buscam as autoridades. “Para demandar que o Estado realize uma investigação diligente, eficaz e imparcial, a pessoa precisa ter acesso a uma defesa”, alertou a defensora pública Lívia Cásseres. Para ela, estruturas capazes de amparar pessoas negras que sofrem discriminação ou racismo são decisivas para a garantia do devido processo legal e da efetivação de seus direitos.
Na opinião do diretor-geral da Escola da Defensoria Pública da União, César de Oliveira Gomes, essa transformação requer o reconhecimento das limitações e do caráter racista do Sistema de Justiça, mas também que se construam novas soluções para eliminar “mecanismos que operam para a inferiorização das pessoas negras”.
Judiciário refratário
Iniciativas da sociedade civil também têm apoiado pessoas negras na luta antirracista no Sistema de Justiça. Exemplo disso é o Geledés Instituto da Mulher Negra. Conforme a coordenadora de Políticas da Promoção da Igualdade de Gênero e Raça da organização, Maria Sylvia de Oliveira, um dos projetos desenvolvidos com esse viés é o SOS Racismo, que, em 10 anos, atendeu e acompanhou 545 casos, 86,3% deles na esfera penal. Desses, 27% tiveram êxito.
“Percebe-se, na análise desses processos, que o Poder Judiciário é refratário aos casos de racismo apresentados, o que resulta em ineficácia da legislação para efetivar punição de ofensores”, relatou. Casos emblemáticos que chegam ao Geledés têm sido identificados e levados à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Justiça do Trabalho
No encerramento do Seminário, o presidente do TST detalhou a atuação da Justiça Trabalhista, com foco na inclusão. Entre eles, destacou medidas relacionadas ao 2º Concurso Público Nacional Unificado da Magistratura do Trabalho: estão escalados para a banca examinadora quatro mulheres negras e dois homens negros, e o edital do certame conterá, por orientação do CNJ, Direito Antisciriminatório como tópico específico, além de questões que contemplarão o tema de forma interseccional.
Também mencionou a instituição do Grupo de Trabalho em Estudos de Gênero, Raça e Equidade, que deverá propor políticas e programas institucionais voltados à promoção da equidade e ao enfrentamento das discriminações no âmbito da Justiça do Trabalho. No mesmo sentido, foi criada na Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (Enamat) uma comissão de estudos sobre questões raciais no Direito Internacional e no Direito brasileiro, e as ações de formação inicial e continuada de magistrados contemplarão direitos antidiscriminatórios trabalhistas e questões de raça.
Organização
Organizaram o evento: o Tribunal Superior do Trabalho; a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (Enamat), Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), Centro Internacional pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), Instituto do Negro Padre Batista (INPB), Escola Superior da Defensoria Pública da União (ENADPU) e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Com informações do TST