A decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de alterar a destinação dos votos obtidos por candidatos nas eleições de 2018 que tiveram seus registros cassados por ilícito eleitoral afetou pelo menos oito Assembleias Legislativas, além de duas bancadas estaduais na Câmara dos Deputados.
A orientação foi firmada em outubro de 2020. A partir dali, votos que foram obtidos em 2018 por candidato que cometeu algum ilícito eleitoral passariam a ser considerados nulos. A consequência era o recálculo do quociente eleitoral e a possível mudança da destinação de vagas nas eleições proporcionais (deputado estadual e federal). A tal processo dá o nome de retotalização de votos.
Para firmar essa posição, o TSE precisou superar a regra que ele próprio editou para avisar aos partidos e candidatos como o tema seria tratado em 2018.
O artigo 219, inciso IV, da Resolução 23.554/2017 especificamente estabelece que só serão nulos os votos do candidato que, na data da votação, esteja com o registro deferido, mas seja posteriormente cassado, desde que a decisão condenatória seja publicada antes das eleições.
A votação que consolidou a mudança de orientação foi resolvida por 4 votos a 3. Ficou evidente o desconforto dos ministros em passar por cima das próprias regras em prol de uma suposta segurança jurídica. Tanto é que, um mês antes, o TSE fez o mesmo, mas usou uma solução processual para minimizar esse desgaste.
Na fatídica votação, o então presidente da corte eleitoral, ministro Luís Roberto Barroso, destacou que “resolução não é jurisprudência” e que “o próprio tribunal não cumprir a própria resolução é problemático. Mesmo que não esteja feliz com ela”. E, ao ficar vencido, fez um alerta: “A decisão vai afetar e gerar retotalizações pelo Brasil afora”.
É exatamente o que tem acontecido. A aplicação do precedente pelo próprio TSE afetou as Assembleias Legislativas de Acre, Bahia, Distrito Federal, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia e Sergipe, além das bancadas de Acre e Sergipe na Câmara dos Deputados.
Dança das cadeiras
O maior impacto, até agora, foi sentido no Paraná. Em outubro de 2021, o TSE cassou o mandato do deputado estadual Delegado Francischini (PSL) por uso indevido dos meios de comunicação social. Ele usou uma live no Facebook para espalhar fake news eleitorais no dia da votação.
Francischini foi o deputado mais bem votado da história do Paraná. Sem os seus 427,7 mil votos, o quociente eleitoral do PSL foi drasticamente alterado e outros três deputados perderam o mandato: Emerson Bacil, Cassiano Caron e Do Carmo, que ocupava a mesa diretora da casa, no cargo de 2º vice-presidente.
À época do julgamento, os deputados paranaenses mostraram preocupação com o precedente. Luiz Cláudio Romanelli (PSB) disse que a nova jurisprudência é “muito grave” pois trata-se de uma regra que não vigia para as eleições de 2018, e afirmou que seria “um despropósito haver uma mudança desse tipo”.
O caso em que o TSE alterou a orientação sobre a destinação dos votos tratou da cassação de Targino Machado (DEM) por usar atendimentos médicos gratuitos em troca de votos da população carente. Angelo Almeida (PSB) ficou com a vaga. Sem poder aproveitar os votos, o DEM deixou de ter o número mínimo de cadeiras que o regimento interno exige para a formação de bancada parlamentar. Perdeu, assim, todas as prerrogativas que dela decorrem.
Outro deputado estadual baiano cassado pelo TSE foi Marcell Moraes (PSDB), que usou serviços veterinários em troca de apoio eleitoral. Mesmo sem os seus 64,2 mil votos, a vaga permaneceu com o partido: a retotalização colocou Tiago Correia como titular.
Apesar disso, não faltaram críticas. Presidente estadual do PSDB, o deputado federal Adolfo Viana disse ao jornal A Tarde que os votos de Moraes deveriam ficar com a coligação, pois essa foi a regra acertada previamente. “Para mim é uma aberração, essa não é a regra do jogo”.
No Acre, três deputados eleitos tiveram seus votos anulados pelo TSE. Um deles foi o deputado estadual Josa da Farmácia (Podemos), por aliciamento de eleitores. Os outros dois foram julgados na ocasião em que o TSE usou a solução processual para superar a própria resolução. De uma só vez, foram cassados a deputada estadual Doutora Juliana (PRB) e o deputado federal Pastor Manoel Marcos (PRB).
A anulação desses votos também causou reação na Assembleia Legislativa acreana. “A decisão nos pegou de surpresa”, disse o deputado estadual Daniel Zen (PT). “Em momento nenhum o nosso partido deu impulso para movimentar esse processo, tanto que se não houvesse anulação dos votos, outros parlamentares tomariam posse, e não os que irão tomar”.
Outra decisão que alterou a composição da Câmara dos Deputados foi a cassação de Valdevan Noventa (PSC), que seria substituído por Pastor Jony (PRB) se os votos pudessem ser aproveitados. Jony chegou a ajuizar embargos de declaração no TSE para tentar afastar a anulação da votação, mas não teve sucesso. Sem esses votos, a vaga ficou para Márcio Macedo (PT).
Tumulto legislativo
No Rio Grande do Norte, o uso dos embargos de declaração foi o que permitiu a posse de Jacó Jácome (PSD) na vaga de Sandro Pimentel (PSol), cassado porque quase 80% do financiamento de sua campanha para deputado estadual partiu de fonte não identificada.
Foi nos aclaratórios que o TSE anulou os votos do psolista. “Não consigo compreender que os votos de vocês foram anulados, retirados de dentro da urna por um erro técnico e burocrático”, lamentou Pimentel.
Em Rondônia, também houve disputa nos casos de dois deputados estaduais cassados. Aélcio da TV (PP) perdeu o mandato por desvirtuamento do uso de programa televisivo durante a campanha. A retotalização foi garantida por decisão do ministro Luiz Edson Fachin, a pedido de Jean Mendonça (Podemos), para tentar evitar a posse de Ribamar Araújo (PR).
Afastados os votos de Aélcio, ainda assim Ribamar ficou com a vaga na Assembleia Legislativa rondoniense. Jean também foi empossado, mas graças à retotalização dos votos devido à cassação de Saulo Moreira (MDB), por oferecer dinheiro a mototaxistas em troca de votos e boca de urna. Se os votos dele ficassem para o partido, o empossado seria Willames Pimentel (MDB).
Houve, ainda, dois casos de anulação de votos determinada pelo TSE em que o impacto foi mínimo após a retotalização. No Distrito Federal, José Gomes (PSB) foi cassado por coagir os funcionários de sua empresa a apoiá-lo e deu lugar à correligionária Luiza de Paula (PSB).
No Rio de Janeiro, o deputado estadual Vandro Família (Solidariedade) perdeu o mandato porque sua campanha foi impulsionada pela distribuição de cestas básicas a servidores, feita em período vedado, enquanto era prefeito de Magé. Com a retotalização, o cargo ficou com Coronel Jairo (Solidariedade).
E, mais recentemente, o TSE manteve a cassação do deputado estadual de Sergipe Talyson de Valmir (PR) por abuso do poder econômico e político. Ele foi eleito com ajuda de seu pai, prefeito de Itabaiana (SE), que movimentou a máquina pública em prol da candidatura do filho. A votação na corte veio, também, com a determinação de retotalização, ainda não cumprida.
Na mira do STF
O tema do aproveitamento dos votos de deputados cassados por ilícito eleitoral na campanha eleitoral de 2018 está, agora, a cargo do Supremo Tribunal Federal (STF). A votação do TSE no caso de Targino Machado gerou recurso à corte, que não foi conhecido diante da ausência de prequestionamento, já que o acórdão não tratou do artigo 16 da Constituição Federal.
Trata-se da norma que prevê o princípio da anualidade eleitoral: a lei que alterar o processo eleitoral não pode ser aplicada à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência. Em 2013, o STF estendeu seu uso para as decisões do TSE, no sentido de evitar que elas sejam imediatamente aplicadas quando, no curso do pleito eleitoral (ou logo após o seu encerramento), implicarem mudança de jurisprudência.
Democratas e PSDB, que formaram a coligação que elegeu Targino na Bahia, ajuizaram uma ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) para pedir a inconstitucionalidade da interpretação feita pela corte eleitoral. A ação foi distribuída ao ministro Nunes Marques e não teve pedido liminar analisado.
A ofensa à anualidade eleitoral permeou ainda a decisão do próprio Nunes Marques quando suspendeu a cassação de Fernando Francischini em decisão monocrática, em junho. Ele destacou que a anulação dos votos causou desequilíbrio no processo eleitoral.
“Penso que deve prevalecer a confiança legítima dos participantes das Eleições 2018 quanto à incidência da regra prevista na Resolução. 23.554/2017. Seu afastamento pelo Tribunal Superior Eleitoral, conquanto possível, não poderia aplicar-se a pleito já ocorrido”, disse na decisão.
O mesmo argumento foi usado para suspender a condenação do deputado federal Valdevan Noventa. Ambas as monocráticas foram alvos de recurso e reformadas por maioria de votos pela 2ª Turma do STF.
Um problema de 2018
Todo o problema foi causado porque a Resolução nº 23.554/2017 criou uma regra para uma situação que não pode existir: um candidato que tenha o registro deferido na data da votação, mas já cassado por decisão condenatória publicada antes dessa mesma eleição.
“Ou seja, é absolutamente impossível”, disse o ministro Alexandre de Moraes. “Quando que a candidatura, por abuso de poder político ou abuso de poder econômico, poderá ser cassada antes da eleição?”, acrescentou.
A decisão de anular os votos foi tomada pela maioria pela ideia de não existir segurança jurídica ao se permitir que um partido político se aproveite dos votos obtidos por um dos seus candidatos com o abuso de poder econômico ou qualquer outro ilícito eleitoral.
O ministro Luiz Edson Fachin votou pela anulação dos votos, mas com aplicação apenas a partir das eleições de 2020. De qualquer maneira, esse problema morreu nas eleições de 2018, pois as resoluções aprovadas pelo TSE eliminaram a possibilidade desse aproveitamento da votação.
Com informações da Conjur