O princípio segundo o qual a imputação penal não pode ultrapassar o indivíduo que cometeu o ato ilícito é perfeitamente aplicável às empresas que são condenadas criminalmente. No caso de elas serem incorporadas por outra pessoa jurídica, porém, a punibilidade deve ser extinta.
Com esse entendimento, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) livrou a Seara de cumprir pena pelos ilícitos cometidos pela Jandelle S.A., empresa que incorporou e que era alvo de ação penal no estado do Paraná por poluição no descarte de resíduos de milho e soja.
Com a incorporação empresarial pela Seara, a pessoa jurídica da Jandelle foi extinta. O Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) entendeu que isso equivaleria à morte de um réu, o que leva à extinção da punibilidade, conforme o artigo 107, inciso I, do Código Penal.
Ao STJ, o Ministério Público do Paraná defendeu que o princípio da intranscendência da pena é destinado e aplicável apenas aos seres humanos, e não às pessoas jurídicas. O tema dividiu os ministros da 3ª Seção. O julgamento foi resolvido por 5 votos a 4.
Prevaleceu a posição do relator, ministro Ribeiro Dantas. Ele foi acompanhado pelos ministros Sebastião Reis Júnior e Reynaldo Soares da Fonseca e pelos desembargadores convocados Olindo Menezes e Jesuíno Rissato.
Réu é réu
Para o ministro Ribeiro Dantas, a incorporação da pessoa jurídica acusada de crime ambiental deve levar à extinção da punibilidade porque não há norma que autorize a transferência dessa responsabilidade penal à empresa incorporadora.
Ele apontou que a pretensão punitiva estatal não se enquadra no conceito jurídico de obrigação patrimonial transmissível. E que também não se confunde com a reparação civil dos danos causados ao meio ambiente.
“Se o Direito Penal optou por permitir a responsabilização criminal dos entes coletivos, mesmo com suas peculiaridades decorrentes da ausência de corpo biológico, não pode negar-lhes a aplicação de suas garantias fundamentais, usando essas mesmas peculiaridades como argumento”, disse o relator.
Assim, se a pessoa jurídica é extinta de forma lícita ao ser incorporada por outra empresa, aplica-se analogicamente o artigo 107, inciso I, do Código Penal, com a extinção da punibilidade. “Procurei uma saída mais técnica possível”, disse o ministro Ribeiro Dantas.
Os votos que acompanharam o relator indicaram algumas dificuldades práticas de negar a extinção da punibilidade pela incorporação da pessoa jurídica. “Fica difícil processar penalmente uma empresa que não existe mais”, disse o desembargador Olindo Menezes.
“Já que entendemos que se pode penalizar a pessoa jurídica, aplicando-lhe a lei penal, tenho dificuldade de entender que não se aplica a ela os institutos benéficos instituídos em favor do réu. Haveria aí uma falta de isonomia total”, argumentou o desembargador Jesuíno Rissato.
Morte fictícia
Abriu a divergência o ministro Joel Ilan Paciornik, que refutou a equiparação da extinção da personalidade jurídica à morte de uma pessoa que é acusada ou já condenada por um crime. Para ele, isso só seria tecnicamente possível se a empresa fosse dissolvida e liquidada.
O voto divergente aponta que, quando há uma reestruturação societária, a extinção da pessoa jurídica é apenas uma metamorfose economicamente viável de perpetuação das atividades com fins lucrativos. “Mesmo quando a empresa é absorvida por outra, ela continua vivendo através da incorporadora.”
Além disso, segundo ele, a incorporação societária sequer é um ato irreversível, como é a morte humana. Por isso, aplicar o artigo 107, inciso I, à pessoa jurídica seria o mesmo de dar aos administradores da empresa acusada penalmente autonomia para escapar da sanção e esvaziar o caráter ressocializador da pena.
“Hipoteticamente remida de seus pecados, mas viva no seio da nova sociedade, a empresa poluidora poderá manter suas instalações e sua atividade, operando com uma nova placa estampada com sua metamórfica denominação”, criticou ele.
“Conviverá ao seu redor com a mesma sociedade perplexa e impotente que testemunhou e suportou as atrozes agressões ao meio ambiente, bem jurídico difuso que a Constituição Federal quis preservar por meio do Direito Penal, a última ratio do Estado democrático”, acrescentou.
Esvaziamento penal
Ao acompanhar a divergência, o ministro Saldanha Palheiro observou que extinguir a punibilidade devido à incorporação empresarial deixaria a sociedade sujeita a artifícios de quaisquer empresários. “É uma vulnerabilidade absoluta”, pontuou.
Já o ministro João Otávio de Noronha destacou que a Lei 9.605/1998, que permitiu a responsabilização penal da pessoa jurídica em caso de crime ambiental, fez isso no campo obrigacional: as pessoas estabelecem obrigações de dar e de fazer, todas aptas a serem sucedidas.
O ministro Rogerio Schietti seguiu a mesma linha e assinalou que a posição da maioria abre brecha para que administradores simplesmente decidam que, diante de uma punição penal por ilícito ambiental, não seja mais interessante manter a existência da pessoa jurídica.
“Temos de considerar que à responsabilidade penal da pessoa jurídica aplicam-se as regras e procedimentos previstos no Código de Processo Penal para a pessoa física, mas com grano salis (com parcimônia ou ponderação). Há situações em que não é possível transpor totalmente a dogmática penal para essas situações.”
Com informações da Conjur