A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) garantiu às famílias da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, o direito de acesso às provas já produzidas e documentadas no inquérito policial que investiga os supostos mandantes do assassinato dos dois, ocorrido em março de 2018.
No julgamento, o colegiado entendeu ser aplicável às famílias das vítimas a Súmula Vinculante 14 do Supremo Tribunal Federal (STF), segundo a qual é direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova já documentados em procedimento investigatório.
A turma também levou em consideração recomendações internacionais para participação das famílias na investigação de homicídios, como o Protocolo de Minnesota, além das decisões recentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) sobre o tema.
Sob a alegação de lentidão nas investigações relativas aos autores intelectuais do crime, as famílias – que já são assistentes de acusação no processo contra os ex-policiais Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, denunciados como supostos executores do duplo homicídio – pediram, em 2021, autorização para acesso aos autos sigilosos do inquérito policial.
O pedido foi indeferido em primeiro grau. Contra a decisão, as famílias impetraram mandado de segurança no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), mas a corte manteve a decisão judicial sob o fundamento de que a Súmula Vinculante 14 não se estenderia ao assistente da acusação. Além disso, o TJRJ considerou que, segundo o artigo 268 do Código de Processo Penal, o assistente de acusação só atua no processo a partir do recebimento da denúncia.
Acesso excepcional aos inquéritos busca resguardar direitos e garantias fundamentais
O relator do recurso no STJ, ministro Rogerio Schietti Cruz, explicou que o sigilo atribuído aos inquéritos policiais tem relação com a eficácia da investigação pré-processual, tendo em vista que a publicidade dos atos investigatórios poderia atrapalhar a obtenção de provas e facilitar interferências indevidas no procedimento.
Por outro lado, o ministro lembrou que os tribunais superiores passaram a relativizar esse sigilo, sobretudo para evitar a violação de direitos e garantias fundamentais. Nesse contexto, explicou, é que o STF editou a Súmula Vinculante 14, a qual, na visão do ministro, permite interpretação que inclua não apenas os investigados, mas também as vítimas e as pessoas com interesse justificado no caso.
“Entendo que o direito de acesso da vítima ao que consta no inquérito policial deflui diretamente do princípio republicano. Trata-se de providência essencial para garantir ao ofendido o direito à verdade, à memória, à justiça e à devida reparação”, afirmou.
Julgados da Corte IDH preveem participação de famílias nas investigações
Em seu voto, Rogerio Schietti lembrou que a Corte IDH, ao julgar o caso da Guerrilha do Araguaia, reforçou que as vítimas de violações de direitos humanos ou seus familiares devem contar com amplas possibilidades de serem ouvidos e atuar nos processos – tanto à procura do esclarecimento dos fatos e da punição dos responsáveis como em busca de uma devida reparação.
Outro caso da Corte IDH citado pelo relator foi o da Favela Nova Brasília, no qual a corte internacional determinou que o Brasil adotasse medidas legislativas ou de outra natureza necessárias para permitir às vítimas de delitos ou a seus familiares a participação nos procedimentos conduzidos pela polícia ou pelo Ministério Público.
“Vejo como danoso ao sistema jurídico-criminal e à ordem constitucional vigente o desapreço do Estado brasileiro em acatar e incorporar às suas instituições protocolos e tratados internacionais de direitos humanos, e em adimplir, satisfatoriamente, sentenças proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos”, destacou o ministro ao lembrar que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Recomendação 123/2022, segundo a qual o Judiciário brasileiro deve observar tratados e convenções internacionais de direitos humanos e seguir a jurisprudência da Corte IDH.
Famílias têm direito a respostas sobre o andamento das investigações
Além dos julgados da Corte IDH, Schietti enfatizou que o Protocolo de Minnesota – elaborado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos – estabelece que a participação dos membros da família constitui elemento importante para uma investigação eficaz, de modo que as autoridades devem mantê-los informados sobre os rumos do procedimento investigativo.
No caso dos autos, Schietti ressaltou que as famílias de Marielle e Anderson não pretendem ser habilitadas como assistentes da acusação no inquérito policial, tampouco buscam interferir nas investigações, mas sim ter acesso às provas já produzidas e documentadas, mesmo porque, ao contrário do que entendeu o TJRJ, há potencial conexão entre o processo que apura os executores do crime e o inquérito que investiga os seus mandantes.
“Passados 1.861 dias dos assassinatos, parece-me não só razoável, mas imperioso que o Estado forneça respostas às recorrentes acerca do andamento das investigações”, concluiu o ministro ao dar provimento ao recurso em mandado de segurança.
Com informações do STJ