A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o juiz pode condenar o réu ainda que o Ministério Público peça a absolvição nas suas alegações finais. No entanto, a interpretação que prevaleceu na corte enfrenta forte oposição de uma corrente de profissionais do Direito, que enxerga nela violações ao sistema acusatório.
No julgamento, o voto vencedor foi o do ministro Rogerio Schietti. O magistrado entendeu que, quando o MP pede a absolvição, não abandona a persecução penal, e ainda resta um conflito a ser sanado. Para ele, condicionar a decisão do juiz à manifestação do MP transformaria o órgão acusador em julgador e afrontaria a independência funcional da magistratura.
O conflito diz respeito a duas previsões do Código de Processo Penal. O artigo 385 da norma expressamente autoriza o juiz a condenar mesmo se o MP opinar pela absolvição. Porém, o artigo 3º-A, incluído em 2019 pelo pacote “anticrime”, reforçou que o processo penal brasileiro tem estrutura acusatória e proibiu a atuação de ofício do magistrado.
O sistema acusatório, reforçado pela norma recente, está consolidado no país desde a Constituição de 1988. Nele, há a separação entre as funções de acusar, julgar e defender. É diferente dos sistemas inquisitoriais, nos quais todas essas funções são de competência do juiz.
Conforme a criminalista Márcia Dinis, a inclusão do artigo 3º-A deveria implicar a revogação tácita do artigo 385 — a revogação tácita ocorre quando uma norma posterior torna a anterior incompatível.
“Na estrutura acusatória do processo penal, o MP é o único titular da pretensão acusatória, o que condiciona o poder de punir do Estado ao seu exercício pelo Parquet”, afirma ela.
Como ressalta Renato Stanziola Vieira, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), uma das características mais importantes do sistema acusatório é a separação dos atores do processo penal. Assim, quando o MP — que é quem pode pedir a condenação — resolve opinar pela absolvição, o juiz que condena “está se substituindo no pedido de condenação”. Em outras palavras, está “propiciando uma decisão condenatória sem pedido”.
Na visão de Márcia, nesses casos, o juiz acaba agindo de ofício e, dessa forma, viola o princípio acusatório, “basilar no processo penal democrático brasileiro”. “Cabe ao magistrado manter uma posição equidistante das partes a fim de garantir a imparcialidade necessária para não comprometer o contraditório, o devido processo legal e a inércia da jurisdição.”
Para ela, nem mesmo o “prévio exercício da pretensão acusatória” — expressado pelo MP no ato da denúncia — legitima uma condenação caso o órgão, mais tarde, opine pela absolvição.
“Se a acusação formula pedido de absolvição, significa que foi tomada uma decisão consciente de não dar prosseguimento à persecução penal, por estarem ausentes os pressupostos necessários para a condenação”, aponta a advogada. O juiz não pode, segundo ela, “exercer o poder punitivo sem a necessária provocação”.
André Luís Alves de Melo, promotor em Minas Gerais, também entende que a decisão do STJ “desconsidera o sistema acusatório”. Por meio de uma analogia com o artigo 28 do CPP, ele diz que, nos casos de pedido de absolvição pelo MP e discordância do Judiciário, teoricamente seria necessário encaminhar os autos ao procurador-geral de Justiça.
De qualquer forma, Melo argumenta que, se a própria acusação considera não ter provas suficientes e a defesa concorda com a tese, no mínimo é o caso de aplicação do princípio in dubio pro reo — ou seja, a partir da existência de dúvida, favorecer o réu e absolvê-lo.
Conflito institucional
O julgamento do STJ era sobre um promotor de Justiça condenado pelo crime de concussão. O MP pediu a absolvição do réu, mas o Tribunal de Justiça do Pará confirmou a condenação.
Segundo o jurista Lenio Streck, colunista da revista Consultor Jurídico, “talvez o caso concreto não fosse o melhor para enfrentar essa grande questão”. Mesmo assim, ele acredita que a posição do ministro Sebastião Reis Júnior, cujo voto ficou vencido, é a melhor.
O magistrado, relator do recurso, também viu violações ao sistema acusatório, “que predomina no processo penal”, e se manifestou contra a condenação proferida pelo TJ-PA.
“O MP é uma magistratura. Ou deveria ser”, afirma Streck. “Se o MP tem soberania para arquivar — e tem —, por qual razão não tem para desistir da condenação de um réu?”, indaga.
O jurista conta que, quando era procurador de Justiça, isso funcionava na câmara em que atuava no TJ-RS. Ele e seus colegas começaram, “antes de todos”, a aplicar essa tese na prática.
Na visão de Streck, a decisão do STJ, “no fundo, mostra a profunda desconfiança do Judiciário para com o MP. Talvez o MP tenha de se perguntar por quê”.
Já segundo Melo, o reforço ao sistema acusatório, trazido pela lei de 2019, é uma mudança de perspectiva cultural. “O Judiciário às vezes resiste em perder um pouco de poder.”
Com informações da Conjur