O Supremo Tribunal Federal (STF) já tem maioria para proibir que magistrados façam audiências para ‘confirmar representação’ apresentada por uma vítima de violência doméstica contra seu agressor. Os ministros frisaram que a Lei Maria da Penha só prevê a realização de oitiva com uma mulher que foi violentada caso ela diga que quer se retratar da denúncia.
Segundo o colegiado, ‘qualquer estereótipo criado pelo Judiciário para imaginar que a audiência é obrigatória viola o direito à igualdade, porque discrimina injustamente a vítima de violência’.
A decisão confirma entendimento já assentado pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento concluído em março, no sentido de que a audiência prevista na Lei Maria da Penha só é necessária caso a vítima manifeste a vontade de se retratar, antes do recebimento da denúncia contra o agressor.
Na ocasião, a Corte teve o mesmo entendimento agora exarado pelo Supremo quando a casos de violência doméstica em que for necessária pedido da vítima – via representação – para que o Ministério Público mova a ação contra o suposto agressor. Em certas situações, como agressões físicas perpetradas no contexto de violência doméstica (lesão corporal) não é necessária tal representação. Assim o MP pode acusar o investigado independente do pedido da vítima.
A ação em pauta no plenário virtual do STF foi ajuizada pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) contra o artigo 26 da Lei Maria da Penha, que estabelece que uma mulher só pode renunciar de uma representação feita contra seu suposto agressor em audiência perante o juiz.
A entidade narrou que magistrados têm marcado oitivas por iniciativa própria (de ofício), sem manifestação das vítimas. Nessa linha, argumentou que a audiência tem o objetivo de verificar ‘o real desejo’ de uma mulher alvo de agressão em, eventualmente, se retratar, não devendo ser usada como um momento para ‘confirmar’ a representação.
A decisão do STF não derruba o artigo da Lei Maria da Penha, mas impede a designação de ofício da audiência, além de vedar a interpretação do não comparecimento da vítima à oitiva como uma ‘retratação tácita’ ou ‘renúncia do direito à representação’.
A decisão segue parecer da Procuradoria-Geral da República, que explicou que a Lei Maria da Penha versa sobre audiências destinadas à ‘confirmação da retratação’ manifestada por uma mulher que sofreu violência doméstica.
Na avaliação do órgão, o juiz marcar uma audiência, por iniciativa própria, para ‘confirmar’ a representação da vítima implica em ‘vitimização secundária’ e ofensa aos ‘direitos humanos das mulheres’.
O Ministério Público Federal ainda apontou a inconstitucionalidade de magistrados declararem a ‘renúncia tácita’ à representação – a retirada da mesma – quando a vítima de violência não comparece à audiência. “Cabe ao Ministério Público o eventual oferecimento da denúncia a partir da representação da mulher”, ressaltou a PGR.
Ao analisar o caso em julgamento virtual, os ministros Dias Toffoli, Kassio Nunes Marques, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Luiz Fux seguiram o voto do relator, Edson Fachin. Ele explicou que a função de uma audiência perante o juiz é permitir que a vítima, assistida por uma equipe multidisciplinar, ‘possa livremente expressar sua vontade’, não cabendo ao magistrado marcar, de ofício, a oitiva.
“Qualquer outra finalidade, ou qualquer estereótipo criado pelo Poder Judiciário para imaginar que a audiência é obrigatória viola o direito à igualdade, porque discrimina injustamente a vítima de violência. A garantia da liberdade só é assegurada se for a mulher quem exclusivamente solicita a audiência. Determinar o comparecimento é, portanto, violar a intenção da vítima; é, em síntese, discriminá-la”, ressaltou.
Fachin frisou como é dever do Estado aplicar as leis de combate à violência contra a mulher de forma imparcial, justa e neutra a estereótipos de gênero. Nesse contexto, ele apontou que tornar obrigatória a audiência prevista na Lei Maria da Penha vai de encontro à Constituição: “a inconstitucionalidade é manifesta”.