O reconhecimento de pessoas, presencial ou por fotografia, deve observar o procedimento previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal. Caso contrário, o reconhecimento é inválido e não pode fundamentar prisão cautelar ou condenação. A sentença já proferida só pode ser mantida se baseada em provas independentes e não contaminadas.
Esse foi o entendimento do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes ao votar, nesta terça-feira (23), para declarar a nulidade do reconhecimento pessoal de um homem, absolvendo-o de condenação por roubo devido à ausência de outras provas de autoria do crime. O julgamento foi interrompido por pedido de vista do ministro Ricardo Lewandowski.
Dois homens trafegavam pela Avenida Jacu Pêssego, perto do Parque Pantanal, na zona sul de São Paulo, e pararam para ajudar um conhecido cujo carro havia parado por falta de combustível. Nisso, apareceram três homens. Dois deles se aproximaram e roubaram relógio, carteira, celular e R$ 100, enquanto um terceiro ficou ao lado do Parque Pantanal, com uma arma de fogo apontando para a direção das vítimas, segundo elas.
Policiais militares foram informados do ocorrido e abordaram, uma hora depois, um homem correndo no Parque Pantanal. Os PMs o revistaram e não encontraram os bens roubados nem itens ilegais. Ainda assim, tiraram uma foto dele e enviaram via WhatsApp para os policiais que estavam com as vítimas. Elas o reconheceram como um dos autores do crime — o que estava armado — e o homem foi preso em flagrante. Posteriormente, foi condenado por roubo com arma de fogo e em concurso de agentes, decisão mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
A Defensoria Pública da União impetrou Habeas Corpus sustentando a nulidade do reconhecimento pessoal, mas o pedido foi negado pelo Superior Tribunal de Justiça.
O relator do caso no Supremo, ministro Gilmar Mendes, afirmou que o reconhecimento fotográfico deve seguir o procedimento para o reconhecimento de pessoas estabelecido no artigo 226 do CPP. Diante da ausência de regulação normativa e das deficiências práticas, tal método deve ser analisado com cautelas, disse o magistrado. Além disso, é necessário fazer a produção posterior de provas em juízo e a sua corroboração em outros elementos probatórios produzidos em contraditório na fase judicial, citou.
Segundo o relator, o procedimento do artigo 226 do CPP é necessário à confiabilidade de informação dependente da memória, como o reconhecimento. Portanto, sua violação acarreta a nulidade do ato e sua desconsideração para fins decisórios. Dessa maneira, uma condenação só pode ser proferida ou mantida se houver elementos independentes para superar a presunção de inocência.
Gilmar Mendes também destacou que a repetição, em juízo, do reconhecimento feito irregularmente na fase policial não pode fundamentar, por si só, a condenação. O ministro também citou precedentes do STF que absolveram réus condenados exclusivamente com base no reconhecimento fotográfico (HCs 172.606 e 157.007).
Precedentes do STJ
O magistrado citou decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto. A 5ª Turma da Corte concluiu que o reconhecimento fotográfico somente poderia embasar uma condenação se corroborado por outros elementos probatórios produzidos em juízo e com respeito ao contraditório (HC 462.030).
Por sua vez, a 6ª Turma fixou que o reconhecimento fotográfico praticado de modo distorcido, já que enviado por mensagem eletrônica às vítimas e com informação errada sobre o suspeito, acarreta a nulidade da prova, mesmo se confirmado em juízo (HC 335.956).
Gilmar ainda mencionou julgamento da 6ª Turma do STJ que reconheceu a invalidade de qualquer reconhecimento — pessoal ou fotográfico — que não siga o procedimento do artigo 226 do CPP (HC 598.886).
Caso concreto
No caso, Gilmar Mendes votou por absolver o réu, pois sua condenação foi exclusivamente baseada no reconhecimento pessoal feito inicialmente por foto recebida via WhatsApp. O ministro também apontou contradições nos depoimentos das vítimas.
“Assim, neste caso não houve prévia descrição da pessoa a ser reconhecida; não foram exibidas outras fotografias de possíveis suspeitos; ao contrário, a polícia tirou uma foto de um suspeito encontrado em um parque uma hora depois do fato, mas que nada indicava, até então, ter qualquer ligação com o roubo investigado, visto que não houve qualquer motivação para a busca pessoal nele realizada. Em sede judicial, repetiu-se o reconhecimento pessoal. Contudo, na ata da audiência não há qualquer detalhamento sobre o procedimento realizado. Portanto, devem ser declarados nulos os elementos produzidos em tais reconhecimentos, os quais não podem embasar a sentença condenatória”, disse o ministro.
Com base no julgamento, pela 6ª Turma do STJ, do HC 598.886, Gilmar sugeriu três teses:
1) O reconhecimento de pessoas, presencial ou por fotografia, deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime e para uma verificação dos fatos mais justa e precisa.
2) A inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita, de modo que tal elemento não poderá fundamentar eventual condenação ou decretação de prisão cautelar, mesmo se refeito e confirmado o reconhecimento em Juízo. Se declarada a irregularidade do ato, eventual condenação já proferida poderá ser mantida, se fundamentada em provas independentes e não contaminadas.
3) A realização do ato de reconhecimento pessoal carece de justificação em elementos que indiquem, ainda que em juízo de verossimilhança, a autoria do fato investigado, de modo a se vedarem medidas investigativas genéricas e arbitrárias, que potencializam erros na verificação dos fatos.
Racismo estrutural
Gilmar Mendes ainda apontou que o desrespeito ao procedimento do artigo 226 no reconhecimento de pessoas “potencializa brechas para abusos ou mesmo reprodução de desigualdades e preconceitos sociais, como o racismo estrutural que fomenta a seletividade do sistema penal”.
Nessa linha, o ministro defendeu a construção de critérios jurisprudenciais e doutrinários para a revista pessoal de suspeitos de crimes e a submissão deles ao reconhecimento pessoal.
“Tal medida invasiva não pode ser realizada de modo genérico e indiscriminado, mas carece de justificação em elementos que indiquem, ainda que em juízo de verossimilhança, a autoria do fato investigado”.
Pedido de vista
O julgamento foi interrompido por pedido de vista de Ricardo Lewandowski.
O ministro disse que precisa analisar a questão com mais profundidade para decidir se o reconhecimento fotográfico feito em desacordo com as regras do artigo 226 do CPP constitui nulidade absoluta ou relativa (que pode ser corrigida).
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RHC 206.846
Com informações da Conjur