O pleno exercício do direito de defesa exige que o acusado tenha acesso às negociações e à audiência de homologação de acordo de colaboração premiada que o incrimine. Com esse entendimento, o ministro do Supremo Tribunal Federal(STF) Ricardo Lewandowski assegurou a empresários o acesso a documentos da delação do operador Marcelo Guimarães, firmada em desdobramento da “lava jato” no Rio de Janeiro.
Sócios da empresa DMO Distribuidora de Materiais Ortopédicos, Julio Cesar Marinho, Nilton Souza da Silva e Othon de Oliveira Pedro foram denunciados pelo Ministério Público Federal por corrupção ativa e lavagem de dinheiro. Os procuradores afirmam que os empresários pagaram propina a agentes da Polícia Federal para impedir o prosseguimento de um inquérito policial. A denúncia deriva do acordo de colaboração premiada de Marcelo Guimarães e medidas cautelares relativas a ele.
Quando os sócios da DMO foram citados para apresentar resposta à acusação, a defesa deles, comandada por André Mirza, pediu a disponibilização das gravações audiovisuais e atas de todas as reuniões e tratativas do acordo de colaboração premiada de Marcelo Guimarães. O pedido foi negado pelo juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal Criminal do Rio.
A defesa então impetrou Habeas Corpus, alegando violação ao contraditório e à ampla defesa. A 2ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (RJ e ES) concedeu a ordem de HC.
O MPF interpôs recurso especial para impedir o acesso dos acusados às propostas ou tratativas prévias ao acordo de colaboração premiada de Marcelo Guimarães. O vice-presidente do TRF-2, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, admitiu o recurso especial e concedeu efeito suspensivo, voltando a impedir que a defesa obtivesse os documentos da delação do operador.
Posteriormente, o desembargador aceitou pedido da defesa e anulou a decisão que admitiu o recurso especial, uma vez que ela foi proferida sem intimação dos acusados para apresentarem contrarrazões. No entanto, ele manteve o efeito suspensivo.
A defesa apresentou reclamação ao Supremo, alegando violação à Súmula Vinculante 14, que tem a seguinte redação: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.
Em manifestação, o vice-presidente do TRF-2 sustentou que não houve cerceamento de defesa, uma vez que os advogados tiveram acesso aos fatos tratados na ação penal contra os sócios da DMO. O magistrado também ressaltou ser “temerário” liberar o acesso a tais documentos sigilosos, que podem atrapalhar investigações.
Direito de defesa
Em sua decisão, Ricardo Lewandowski apontou que o artigo 4º, parágrafo 10-A, da Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013), assegura ao réu delatado “a oportunidade de manifestar-se após o decurso do prazo concedido ao réu que o delatou”. O ministro também destacou que a 2ª Turma do STF já decidiu que delatado deve ter acesso ao acordo de colaboração premiada de quem o delatou, conforme a Súmula Vinculante 14 (Inquérito 3.983).
“Tal regra, em boa hora estabelecida por esta Suprema Corte, tem por objetivo viabilizar aos acusados o exercício do contraditório para repelir, se for o caso, tudo aquilo que venha a ser usado contra ele pela acusação, evitando abusos e a ocultação de elementos de prova, de modo a fazer valer o direito constitucional ao devido processo legal e à ampla defesa”, avaliou Lewandowski.
Dessa forma, disse, não há amparo legal para negar aos acusados o acesso aos autos em que foi negociado, celebrado e homologado o acordo de colaboração premiada de Marcelo Guimarães. Afinal, o artigo 7º, parágrafo 2º, da Lei das Organizações Criminosas, garante o direito de acesso à colaboração pela defesa até mesmo na fase pré-processual, quando o sigilo ainda não tiver sido retirado – o que ocorre após o recebimento da denúncia.
A disponibilização dos documentos só pode ser negada quando houver a concreta possibilidade de prejudicar investigações, o que não se verifica no caso, declarou o ministro.
Ele também ressaltou que a 2ª Turma do STF estabeleceu que delatados podem questionar o acordo de colaboração premiada de delator. Nesse caso, a Corte garantiu aos acusados o acesso prévio aos termos em que tenham sido citados, nos termos da Súmula Vinculante 14 (HC 142.205).
A denúncia contra os sócios da DMO já foi recebida, o que afasta o sigilo que recai sobre o acordo de colaboração premiada e os depoimentos do colaborador, nos termos do parágrafo 3º do artigo 7º da Lei das Organizações Criminosas, afirmou Lewandowski.
“Por fim, tenho que cabe exclusivamente à defesa técnica avaliar o que efetivamente pode interferir no exercício do seu direito de defesa e em suas postulações. Dessa forma, em observância à paridade de armas e ao princípio da comunhão da prova, a defesa deve dispor das mesmas oportunidades e lhe deve ser franqueado acesso às mesmas provas de que dispõe o ius puniendi estatal, a fim de que ela própria possa verificar as provas que possam ser utilizadas, de modo a formular a melhor estratégia defensiva, no interesse do representado. Daí porque entendo ser direito da defesa, também, obter acesso às tratativas e negociações e à audiência de homologação do acordo de colaboração premiada firmado por Marcelo Guimarães”, apontou o ministro.
Paridade de armas
O advogado André Mirza afirmou que a decisão harmoniza o instituto da colaboração premiada com os primados de um processo justo.
“Além de viabilizar o contraditório e a ampla defesa, a decisão do ministro Ricardo Lewandowski busca conferir concretude ao princípio da paridade de armas, pois, segundo seu entendimento, cabe exclusivamente à defesa analisar as mesmas provas disponíveis ao Ministério Público e decidir quanto à sua pertinência estratégica. Considerando que estamos diante de um assunto que suscita candentes discussões doutrinárias e jurisprudenciais, a nosso ver, a referida decisão representa um avanço dogmático (e civilizatório) no campo processual penal”, opinou.