A decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF) no Habeas Corpus 224.484, concedendo domiciliar a mãe acusada de tráfico, chama atenção, além do caso concreto, para a aplicação da perspectiva de gênero na fundamentação. Nos últimos anos, o tribunal tem adotado uma série de ações para garantir que as decisões dos ministros abordem as vulnerabilidades sociais relacionadas a gênero, raça e classe.
Dentre as diversas iniciativas, destaca-se o fomento da equidade de gênero e da implementação do protocolo para julgamento com perspectiva de gênero (documento aqui), iniciado durante a presidência do ministro Luiz Fux. A iniciativa atendeu a uma recomendação da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em decorrência da condenação do Brasil por omissão quanto ao assassinato de Márcia Barbosa de Souza, em 1988.
Outro destaque é a construção do Banco de Dados de Mulheres Juristas, que busca ampliar a influência do recorte de gênero nas decisões judiciais, consolidando a produção feminina disponível para consulta.
Diante da histórica apropriação masculina dos espaços de produção doutrinária e jurisprudencial, a atuação do Conselho Nacional de Justiça, conforme afirmado pela conselheira Ivana Farina e corroborado pela então corregedora, ministra Maria Thereza de Assis Moura, promove a visibilidade do discurso feminino, em suas mais variadas perspectivas.
“Não se trata de dar mais direito às mulheres, nem uma discriminação contra os homens. A medida visa a trazer à tona a mulher jurista; promover sua visibilidade, para que elas também possam ser chamadas, ouvidas, conhecidas”, disse a conselheira.
Doutrina diversa
Foi nesse contexto que, além de reformar a decisão que negava domiciliar, com base na regra prevista no art. 318-A, do CPP, o ministro Gilmar Mendes declarou a importância da perspectiva de gênero e, principalmente, citou predominantemente mulheres em sua fundamentação.
Uma das pesquisadoras mencionadas pelo magistrado foi a professora Janaina Matida, mencionada pelo artigo “Precisamos fortalecer a defesa criminal com perspectiva de gênero”, publicado na coluna Limite Penal, da revista eletrônica Consultor Jurídico.
Outra mulher mencionada pelo ministro foi Marina Pinhão Coelho Araújo, por seu artigo publicado na Folha de S.Paulo com o título “No direito, o humano não é feminino: Juristas estruturam respostas a partir do que é vivenciado pelo masculino”.
“Ao construir seu conceito de liberdade, Hannah Arendt propôs que só seria realmente livre quem pudesse, em espaços públicos garantidos, desenvolver toda sua personalidade e capacidade como ser humano”, afirma Coelho Araújo. “O sistema jurídico ainda exclui do espaço público a perspectiva de gênero.”
Gilmar também abordou o conceito de “in dubio pro stereotypo“, desenvolvido por Valéria Pandjarjian, Angélica de Maria Mello de Almeida e Wânia Pasinato Izumino. Segundo ele, a perspectiva de gênero deve ser aplicada tanto à condição de vítima, quanto à condição de investigada ou de acusada, para que seja possível superar as limitações dos estereótipos a que as mulheres estão sujeitas.
Ana Luisa Schmidt Ramos foi citada para destacar a importância de adotar a perspectiva de gênero no Judiciário para não reproduzir desigualdades estruturais. Marli Canello Modesti, por suas reflexões sobre prisões de mães envolvidas no tráfico de drogas.
Os trabalhos acadêmicos de Thais Zanetti de Mello Moretto e Bárbara da Silveira também foram citados pelo ministro em sua fundamentação. A decisão ainda lista uma bibliografia básica sobre a questão de gênero, citando autoras como Djamila Ribeiro, Françoise Vergès, Grada Kilomba, bell hooks, Angela Davis, Kimberlé Williams Crenshaw, entre outras.
Arremata a decisão a fala das professoras Silvia Pimentel e Alice Biachini, de seu livro Feminismo(s) (editora Matrioska): “Pretendemos ter conseguido ressaltar o quanto o feminismo e linguagem e ação. É discurso político que se baseia nos ideais de justiça social e igualdade material e é prática revolucionária, que busca concretizar esses ideais, por meio da transformação de valores, estruturas, atitudes e comportamentos.”
“Trata-se, portanto, da construção de filosofias, éticas e políticas, bem como de teorias políticas, sociais, econômicas, culturais e jurídicas, que fundamentam uma prática feminista. Esta, por sua vez, se traduz em movimentos e ações emancipatórias, contra-hegemônicas, tanto coletivas quanto individuais: o(s) feminismo(s) representa(m) uma nova forma de ser e estar no mundo”, afirmam as autoras.
A população brasileira é composta por 52% de mulheres, sem que a representatividade nos espaços jurisdicionais e doutrinário acompanhe a correlação. Ao demostrar que se dedicou a conhecer a produção feminina, em suas múltiplas perspectivas, o ministro Gilmar Mendes contribui para que romper o silenciamento da voz feminina no Direito.
Com informações da Conjur