A campanha do presidente Jair Bolsonaro (PL) contratou o escritório de Tarcísio Vieira de Carvalho Neto, que esteve por sete anos, até maio do ano passado, como ministro do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), um dos principais alvos dos ataques do chefe do Executivo no Judiciário.
A opção por Vieira dá o tom pragmático que o entorno de Bolsonaro busca em 2022. De perfil conciliador, o advogado diz, em entrevista à Folha, que atuará como “vetor para diminuir esses atritos recentemente crescentes entre o Executivo e o Judiciário”.
Ainda que reconheça o conflito, minimiza: “Esses excessos são normais, numa democracia, e acho muito mais positivo essa verborragia do que a mudez”.
Na última semana, Bolsonaro lançou dúvidas sobre as urnas, chamou ministros da corte de “adolescentes” e sugeriu que estariam querendo a volta de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao poder.
O advogado, por sua vez, defende que o sistema eleitoral é confiável e diz crer que o presidente vá respeitar o resultado das urnas. “Não há nenhum tipo de espaço para condutas fora do figurino legal, do devido processo legal.”
Mas, questionado se aconselharia o presidente a cessar com os ataques, diz que não se sente à vontade para qualquer tipo de conselho ao “campeão de votos”, ainda que prefira atuar “num ambiente menos agressivo”.
Confira a entrevista:
Como se deu essa aproximação da campanha e do Bolsonaro?
O conhecimento que eu tenho dele é muito formal, eu diria até diplomático, que veio desse relacionamento entre o tribunal e o Executivo.
Eu já estava no tribunal bem antes de conhecê-lo. Fui indicado duas vezes pela presidente Dilma [Rousseff, PT], uma vez pelo presidente [Michel] Temer [do MDB], e, na última, pelo presidente Bolsonaro.
O que o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, gizou nesta conversa [da contratação] é que o presidente teria feito a nossa indicação. Porque, de um lado, teríamos as capacidades necessárias para atuar na eleição, e, de outro, um perfil de conciliação com o tribunal.
Seria também um vetor para diminuir esses atritos recentemente crescentes entre o Executivo e o Judiciário.
O presidente tem histórico de ataques ao TSE, ao sistema eleitoral e a ministros. Isso será um problema durante a campanha?
Não sei se um problema, porque pela primeira vez temos muitos personagens públicos, não só no Poder Executivo, mas também no Legislativo e no Judiciário, que têm esse comportamento ideológico, de verbalizar mais, de expor mais suas opiniões criticamente. Isso também é um comportamento de ministros de tribunais superiores.
Esses excessos são normais numa democracia, e acho muito mais positivo essa verborragia do que a mudez. Acho que as partes podem chegar a bons denominadores sem sacrifícios individuais de estilos políticos e jurídicos.
O sr. aconselharia o presidente a cessar os ataques? O presidente é um vitorioso, um campeão das urnas. Elegeu-se sucessivas vezes com essa personalidade, e eu não me sinto à vontade para dar nenhum tipo de conselho político a quem já demonstrou nas urnas que tem densidade eleitoral.
Eu, particularmente, gostaria de atuar num ambiente menos agressivo, em termos de posturas tanto do tribunal quanto do Poder Executivo.
O sr. foi ministro do TSE por sete anos. Há algum desconforto em atuar em uma campanha de quem põe em dúvida a todo tempo a legitimidade do sistema? Isso faz parte da ideologia política, e ela não contamina a atuação jurídica profissional de qualquer advogado. É até extremamente comum campanhas eleitorais inteligentes contratarem advogados que tenham até outras preferências políticas, porque vão agir mais fora da paixão, e mais dentro de uma atuação racional.
Não tenho nenhum tipo de desconforto, muito ao contrário, acredito que esse período que passei no tribunal reafirmou minha crença que a boa advocacia deva ser desenvolvida dessa metodologia, mais profissionalizada.
A campanha presidencial seria, de longe, o ponto máximo das nossas carreiras jurídicas [dele e seus sócios]. Estamos muito honrados, com sinceridade total.
Vamos experimentar teses jurídicas novidadeiras. A questão da tecnologia é um desafio muito grande. A Justiça Eleitoral, que sempre se beneficiou em larga escala do uso da tecnologia, ao mesmo tempo se vê desafiada.
Em que sentido?
Tivemos, recentemente, muita dificuldade com o controle das redes sociais. Mas a Justiça Eleitoral conseguiu controlar bem na última eleição presidencial a questão do Facebook, do YouTube, já não conseguiu controlar de maneira tão eficaz a questão do WhatsApp e hoje se apresenta como um desafio inicial bem relevante essa reticência da rede Telegram nessa adesão a essa conciliação com a Justiça Eleitoral.
O ministro Luís Roberto Barroso sinalizou que o aplicativo pode ser bloqueado. É uma medida correta?
A própria legislação prevê que o TSE possa baixar medidas que, do ponto de vista tecnológico, impeçam o desvirtuamento do debate eleitoral, para que não haja deterioração por fake news e inverdades.
Essa seria uma medida extrema, porque sempre será cotejada com princípios constitucionais, como a liberdade de expressão.
Apoiadores do presidente argumentam que feriria a liberdade de expressão. O sr. concorda?
Esse, do ponto de vista jurídico, é o debate mais importante de todos os temas sobre propaganda eleitoral.
O exato limite da atuação da Justiça Eleitoral é que é um desafio muito grande, porque não pode ser um terreno livre, a ponto de gerar o caos, mas também não pode ser o terreno tutelado pela Justiça Eleitoral, como se o destinatário daquela informação não pudesse ele mesmo ter a sua própria opinião.
Qual sua opinião sobre o voto impresso?
Enquanto fui ministro do tribunal, sempre entendemos que o voto impresso é uma decisão do Congresso.
A Justiça Eleitoral não tem preferência política sobre nenhum tipo de sistema. O que ela tem de preocupação é que, a partir dessa decisão, muitas outras administrativas, institucionais, precisam ser tomadas.
Por exemplo, a nossa Constituição prevê que o voto seja secreto. O voto impresso pode trazer dificuldades adicionais quanto à proteção do sigilo, como, por exemplo, se uma impressora falhar e tiver de ser substituída. Essa máquina deveria ser desenvolvida com uma série de sofisticações.
A urna eletrônica [de hoje] tem essa vantagem de não estar ligada em rede, então uma fraude teria de ser feita a partir da inseminação artificial de cada uma delas.
Então, desde que superadas todas as dificuldades tecnológicas e jurídicas, que foram apontadas pelo STF quando suspendeu em caráter liminar a lei que obrigava o voto impresso, não seria um problema de per si para quem quer que seja.
Eu, particularmente, não sou a favor nem contra, acho que os dois sistemas funcionam bem. Essas são decisões soberanas do Congresso, que têm que ser pautadas pelo texto constitucional, que já traz várias camisas de força, que vão impor à Justiça Eleitoral alguns comportamentos difíceis de serem imprimidos na prática.
Haja vista, por exemplo, que as próprias empresas que participaram da licitação falharam na montagem de uma urna eletrônica que pudesse imprimir o voto através de um túnel de acrílico.
O presidente sempre questiona a legitimidade das urnas eletrônicas. Mais recentemente voltou a falar que elas são vulneráveis. O sistema eleitoral é confiável?
Parece-me que sim. As opiniões que eu tenho são todas na linha de que é. A própria Justiça Eleitoral sempre foi a maior interessada em detectar vulnerabilidades.
Como qualquer sistema eletrônico, falibilidades devem existir. Mas a Justiça Eleitoral sempre faz planos periódicos, permanentes, de observação dessas vulnerabilidades, teste de segurança pública, submete a urna a ataques hackers.
Inclusive, muitos críticos da urna eletrônica se elegeram pelo uso da própria urna eletrônica.
O presidente, por exemplo…
A discussão é legítima. O presidente, inclusive, é autor do projeto do voto impresso. É um debate legítimo, em termos democráticos.
Mas é democrático o presidente colocar em dúvida um sistema pelo qual ele foi eleito e pelo qual busca agora a reeleição?
Essa pergunta poderia ser dirigida a ele. Do meu ângulo, ele representa também uma parcela significativa da sociedade que tem interesse nesse debate. Isso é democrático. As coisas da democracia se resolvem a partir desses enfrentamentos.
O Estado alemão, por exemplo, restituiu o voto impresso não porque houvesse algum tipo de comprovação de fraude, mas apenas pela sensação de segurança que o voto impresso produzia na coletividade.
A pergunta que a Justiça Eleitoral sempre se fez é: em nome dessa sensação, vale a pena gastar R$ 2 bilhões? Se o Congresso disser vale, se faz. Se disser não vale, não se faz.
O que estamos produzindo aqui é sensação, e ela é suficiente para mover paixões em qualquer direção.
O presidente vai respeitar o resultado da eleição, independentemente de qual for ele?
Creio que sim, esse é o caminho do Estado democrático de Direito. As regras valem para todos, inclusive para o próprio Estado, para a Justiça Eleitoral.
Não há nenhum tipo de espaço para condutas fora do figurino legal, do devido processo legal. Pelo menos, a crença que se tem no funcionamento da democracia parte dessa consideração inicial, do respeito à lei e ao Estado de Direito.
O presidente tem desferido repetidos ataques a ministros do TSE, em especial Alexandre de Moraes, que estará no comando da corte durante a eleição. Isso pode atrapalhar?
Acredito que não deveria atrapalhar. Qualquer personagem político, qualquer pessoa em geral, não precisa ser amigo de quem quer que seja, mas do ponto de vista democrático existem papéis institucionais que precisam ser desenvolvidos com respeito, urbanidade, e, se houver respeito e urbanidade, as teses jurídicas vão ser debatidas com a maior verticalidade possível. Quem tiver direito ganha, quem não tiver direito perde.
Fonte: Folha de São Paulo