Acabo de despedir-me de meu pai, o Professor Hugo de Brito Machado, vindo trazer a vocês, leitoras e leitores, a triste notícia de seu falecimento. Nem sei como encontro forças, e foco, para escrever estas linhas. Talvez seja no seu exemplo de firmeza, tenacidade e perseverança, que por quarenta e cinco anos tive a imensa honra de testemunhar.
Hugo de Brito Machado nasceu em Piracuruca, no Piauí, aos seis de maio de mil novecentos e quarenta. Perdeu o pai muito novo, não chegando a formar lembranças dele, tendo sido criado apenas pela mãe, minha avó Milarinda, que mesmo sem ter estudado muito, ou talvez justamente por isso, sabia o valor da educação e sempre foi muito cuidadosa na formação de seus filhos. Teve uma infância feliz, em um sítio de nome Limoeiro, onde pôde brincar livremente, e desde muito novo dar espaço a um de seus talentos, de construtor e engenheiro mecânico. Fabricava pequenos caminhões, usando caixotes de madeira que conseguia nas mercearias da cidade. Desmontava lanternas, e outras máquinas já sem uso em sua casa, para construir veículos ricos em detalhes, tais como luzes que acendiam e suspensão independente. Habilidades que décadas depois retornariam na prática do aeromodelismo rádio controlado, outro hobby que praticou, ao lado do estudo do Direito.
Iniciou seus estudos primários em Piracuruca/PI, de onde seguiu para Parnaíba/PI, a fim de cursar o Ginásio São Luís Gonzaga. Estudante interno, saía por vezes para dar voltas pela cidade, passear e assistir a brigas de canário, passatempo que inclusive lhe rendia alguns trocados, na ajuda que dava aos competidores no transporte das gaiolas. Quando os colegas de colégio ameaçaram dizer à sua mãe que ele andava saindo para ver brigas de passarinho na praça da cidade, em vez de ficar estudando, ele retrucava, seguro pelas notas que tirava: “Sim, pode contar para ela. Mas mande os nossos boletins junto com a carta!”
Seguiu para Fortaleza, a fim de servir o Exército Brasileiro — no qual passou pouco tempo, mas que lhe deixou boas lembranças — e cursar o segundo grau, concluído na Escola Fênix Caixeiral, que o formou Técnico em Contabilidade. Ele e o colega José Farias se saíram os melhores colocados do curso, no ano que finalizaram seus estudos, o que levou José a convidar Hugo para montar, com ele, um escritório. Aí começou seu contato com dois grandes amores de sua vida: a minha mãe, Maria José Farias, irmã de José Farias, que conheceu no trabalho, escriturando livros contábeis, com letra cursiva caprichada — detalhe que o impressionou —; e a tributação.
Seu espírito crítico e contestador, que o fazia não baixar a cabeça quando acreditava estar certo, já revelado em episódios como o da réplica aos que queriam denunciar as saídas para ver brigas de canário, levou a que não aceitasse autos de infração recebidos por clientes que sabia não estarem errados. Na elaboração das defesas, sentiu a necessidade de aprofundar os aspectos jurídicos da tributação, somada à curiosidade para saber mais sobre os fundamentos dos tributos cujos fatos geradores contabilizava. Isso o levou ao Curso de Direito, na Universidade Federal do Ceará, concluído em 1966.
Bacharel em Direito, com a formação técnica em contabilidade, Hugo de Brito Machado iniciou, então, uma profícua carreira como advogado tributarista. Foi o período em que escreveu seu primeiro livro, “O ICM”, de 1971. Falei dele em outro texto do ConJur (clique aqui). Em 1979, veio o “Curso de Direito Tributário”, que em suas mais de quarenta edições foi o professor de Direito Tributário de várias gerações, e para cuja publicação a ajuda de seu amigo Ives Gandra da Silva Martins foi fundamental, depois da recusa das editoras universitárias da Universidade de Fortaleza e da Universidade Federal do Ceará, revés que ele gostava de repetir como exemplo de que “há males que vêm para o bem”.
Nos anos de 1973 e 1974, casado com Maria José e já com quatro filhos, não nascido o que escreve estas linhas, prestou concurso para Procurador da República, e para Juiz Federal. Aprovado em ambos, tomou posse como Procurador, cargo que exerceu por algum tempo, mas em seguida pediu exoneração para assumir como Juiz Federal, atuando por muitos anos na Segunda Vara da Seção Judiciária do Ceará. Em 1989, com a criação do Tribunal Regional Federal da Quinta Região, foi promovido, integrando a composição originária da Corte, da qual fez parte até a sua aposentadoria, em 1997. Lembro quando, aos dez anos, em uma determinada manhã, entrei em seu gabinete, em nossa casa, e o vi desligar o telefone e começar a chorar: fiquei preocupado, até perceber que era de felicidade, com a notícia da promoção.
Enquanto integrava o TRF-5, figurou, algumas vezes, em listas tríplices destinadas ao preenchimento de vagas no Superior Tribunal de Justiça. Conquanto o mais votado, em nenhuma das oportunidades foi escolhido pelo então Presidente da República. De um importante e influente político do Ceará, seu amigo, que tentava interceder a seu favor junto ao Executivo Federal, depois ouviu que nada havia contra ele em Brasília, onde era tido como um jurista respeitável. Desabonava-o, junto ao Presidente, apenas uma coisa: o fato de não ser suficientemente “fazendário”. E, realmente, como membro do TRF-5, fazendário ele não era: estudioso do Direito Tributário, não dava razão ao Fisco quando este não a tinha, o que não é tão comum entre membros do Judiciário, notadamente entre aqueles que aspiram ascender na carreira, e que para tanto dependem da boa-vontade do Executivo, dura realidade da qual sua história foi exemplo. Desgostoso, preferiu aposentar-se.
Aposentado, o Prof. Hugo não voltou à advocacia contenciosa. Disse que não teria paciência. Passou a atuar como consultor, assinando pareceres que expressavam, em suas palavras, “como ele decidiria se fosse o juiz”. Nesta época, eu já estava formado e trabalhava com ele, tendo participado de incontáveis reuniões, em nosso escritório, com advogados das mais diversas partes do país, que vinham lhe encomendar pareceres. Em uma dessas ocasiões, depois de explicar longamente o caso a respeito do qual nos consultava, o advogado de um cliente ouviu meu pai dizer que não concordava com a tese a ser defendida. Mesmo assim, insistente, o advogado perguntou: “Mas quanto o Sr. quer para fazer o parecer?”, ao que o Prof. Hugo respondeu, sorrindo: “Nem um centavo, Dr., porque eu não vou fazer o parecer!”
Como Professor, iniciou sua carreira na Universidade de Fortaleza, ainda nos anos 1970, prestando concurso posteriormente para a Universidade Federal do Ceará, da qual foi Professor Titular de Direito Tributário até sua aposentadoria compulsória. Mesmo depois de aposentado, continuou a dar aulas na pós-graduação, enquanto sua saúde permitiu, primeiro como professor visitante, e, depois, voluntariamente mesmo, simplesmente porque era uma das coisas que mais gostava de fazer. Tive a imensa alegria de ser seu aluno, formalmente — porque informalmente o fui durante toda a vida — no curso de Mestrado em Direito da UFC, em 2003.
Nos últimos anos, aposentado da Universidade, e do Tribunal, continuou trabalhando como parecerista, bem como na atualização de seus livros e artigos, o que era para ele um verdadeiro hobby, ao lado do aeromodelismo, cuja oficina ficava logo ao lado de sua biblioteca, e que tantos advogados que lhe pediam pareceres foram convidados a visitar.
A pandemia, e as sequelas que deixou, o impediram de continuar algumas dessas atividades. Entretanto, mesmo em seus últimos dias, já debilitado, trazer-lhe as provas de uma nova edição do “curso”, para que revisasse, era uma das coisas que mais lhe acendiam o brilho de seus verdes olhos.
Advogado, membro do ministério público, magistrado, professor e consultor, em todas essas posições seu pensamento se manteve firme, o que não significa que não tenha mudado, não por conveniências, mas por se convencer de que estava errado, o que testemunhei mais de uma vez. Pode ser identificado como liberal, no mais autêntico sentido da palavra. Não conservador, mas defensor da liberdade em todas as suas facetas. Mostra disso são suas posições favoráveis à progressividade, e ao imposto sobre grandes fortunas, aliadas à defesa do direito ao planejamento tributário, e à incansável luta contra o arbítrio e o agigantamento do poder estatal, inclusive no âmbito dos crimes contra a ordem tributária, ramo em torno do qual também teve escritos repercutindo na jurisprudência, a exemplo da Súmula Vinculante 24/STF. Em poucas palavras, esta frase que gostava de repetir bem traduz sua filosofia política: “Autoridades são apenas alguns, e só durante algum tempo, enquanto cidadãos somos todos nós, e durante toda a nossa vida.”
Preocupado com os aspectos técnicos do Direito Tributário, e com a coerência de seu pensamento, o Prof. Hugo de Brito Machado considerava indispensável, ao bom conhecimento do Direito e ao correto enfrentamento das questões jurídicas, o domínio de noções de Teoria Geral do Direito. Mas tudo sem prejuízo da clareza e da didática. Mostra disso se colhe em seu livro “Uma Introdução ao Estudo do Direito”, publicado inicialmente pela Dialética, e desde a segunda edição pela editora Atlas, cuja iniciativa de escrever lhe veio quando, dando aula a alunos de pós-graduação, percebeu a carência que tinham de noções de teoria do direito, e a falta que isso lhes fazia.
Sobre a Teoria do Direito, em uma primeira fase de seu pensamento, foi rigidamente kelseniano. Lia, anotava e fichava tudo em torno dos principais livros do mestre de Viena. Mas o tempo, a experiência na prática do Direito, e alguns embates com o colega de UFC e amigo Arnaldo Vasconcelos, mudaram seu pensamento, levando-o a escrever o seguinte soneto, que consta do seu livro de Introdução, a partir da segunda edição (Introdução ao Estudo do Direito, 2.ed. SP: Atlas, 2004, p. 14):
“A Justiça é apenas atributo.
Não existe por si. É qualidade.
E mesmo o sábio, aquele mais arguto
não a define com tranquilidade.
Muitos dizem que ela está na lei,
que a obediência deste a realiza.
Também assim um dia eu já pensei.
Tal como o legalismo o preconiza.
Mas hoje vejo que não é assim.
A lei é meio, a Justiça um fim,
um ideal de toda a humanidade.
Enquanto a Lei é simples instrumento,
a Justiça é muito mais, é sentimento
de harmonia de paz, e de igualdade.”
Recordo quando, na festa de inauguração do escritório de um colega, em Fortaleza, ele declamou o soneto para alguns amigos, tendo Paulo Bonavides, que estava ao seu lado, destacado de plano: “É o seu rompimento com Kelsen!”
Cada uma dessas etapas de sua vida reserva detalhes e desdobramentos que recordo com afeto, podendo narrar em minúcias aqui, mas que tornariam este artigo demasiadamente extenso. Talvez um livro de vários volumes. O sentimento, agora, é o de que centenas de páginas seriam insuficientes para traduzir o que ele significou para o Direito Tributário, e, mais ainda, para seu filho caçula, que escreve estas linhas. Uma tijubina, presa em um estojo de lápis para ser depois colocada na roupa de um colega de ginásio. O diretor que lhe confiou a chave da escola, para que pudesse sair e voltar quando quisesse. O papagaio que lhe acordava gritando “Hugo, tomar café para ir à escola”, mesmo aos domingos ou nas férias. O carneiro que usava de meio de transporte, e no qual ia montado para a escola primária. Um camaleão que uma tia jantou enganada pelos demais familiares, que a fizeram pensar que o prato era de frango. Debates com colegas do primeiro ano do Curso de Direito da UFC sobre a obra de Aftalión. As dificuldades que um desafeto ligado à ditadura militar colocou para que fizesse o concurso para juiz federal. Debates acalorados sobre hierarquia da lei complementar, sobre o conceito de faturamento, de lucro, de receita, de mercadoria, a taxatividade da lista de serviços do ISS. Sobre mandado de segurança e a efetividade da jurisdição. Sobre a importância dos conceitos, da teoria, da clareza. Sobre a responsabilidade pessoal do agente público. Acontecimentos havidos durante sua passagem pelo TRF-5, com colegas, advogados e partes. Sua atuação como membro da composição originária da Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado do Ceará (ARCE), a convite do Governador Tasso Jereissati, as experiências que teve no processo de privatização, e os embates com os demais conselheiros do órgão, que eram engenheiros. Disputas acadêmicas com amigos como Ives, Souto, Ataliba, Paulo de Barros e tantos outros cujas obras são pilares do Direito Tributário Brasileiro. Duas delas até já foram referidas na ConJur (o livro falsificado de Baleeiro e a amizade com Edvaldo e o ICM). Talvez tudo isso, um dia, renda uma biografia. No momento, o espaço da coluna, e os olhos marejados do colunista, recomendam parar por aqui. Com um vazio incomensurável no peito, digo adeus a meu querido pai, com quem tanto aprendi, e que continuo vendo, e ouvindo, com nitidez, em cada página de seus livros, que consulto quase que diariamente, e a cada contato com tudo — e foi tanto — que com ele aprendi a gostar. Obrigado, meu pai. Para mim, o Sr. não poderia ter sido melhor, do começo ao fim. Descanse em paz.
Hugo de Brito Machado Segundo é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFCE) e advogado
Artigo originalmente publicado na revista eletrônica Consultor Jurídico