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O Direito e o seu fundamento

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Um grande prazer é o recebimento de um livro como presente, especialmente quando a oferta vem de uma pessoa que a gente quer bem. A satisfação se multiplica quando o fato acontece no plural.

Pois bem. No repouso do veraneio em terras da Barra de Tabatinga de Praias Belas, sítio que – confesso – gostaria que fosse um marquesado meu, recebi um e-mail do amigo Andry Matilla Correa, titular da cátedra de direito administrativo da Faculdade de Direito da Universidade de Havana. A mensagem me brindava com link que permitia o acesso ao seu mais recente livro, cujo título, a despertar curiosidade, é León Duguit, Cuba y el Derecno cubano[1]. O exemplar escrito veio dois meses depois.

Nas palavras de Andry, evidencia-se impossível explicar a integral dimensão da evolução do direito público na centúria passada sem a teoria do mestre de Bordeaux, responsável por uma interpretação até então inédita, de feição realista, objetivista e solidarista. Genuíno representante da belle époque ou l’age d’or do direito público francês, ao lado de outros grandes nomes (Maurice Hauriou, Henry Berthèlemy. Léon Michoud, Adhemar Esmein e Raymond Carré de Malberg), Duguit, na qualidade de um construtor de sistemas (faiseur de système), observou o desenvolvimento da ordem jurídica como um fenômeno social.

Sob o pálio da solidariedade como a essência do Estado e do Direito[2], mostra que o pensar de Duguit deságua na assertiva consoante a qual o direito público consubstancia-se num conjunto de regras que delineiam a organização e o funcionamento do serviço público (teoria do serviço público).

Indo além, num especial átimo de nostalgia, o Andry relata a acolhida nas primeiras décadas do século XX da obra do decano de Bordeaux em Havana – cidade que, à época, era, no dizer de Leonardo Padura[3], o parnaso da América Central –, reproduzindo em anexo fac-símile do artigo que Duguit, atendendo convite dos estudantes cubanos, publicou na revista Juventud.

Passados alguns meses, mas ainda num clima de pandemia que insiste em não desaparecer, tive a alegria renovada de receber de outro amigo, o Alexandre Luna Freire, que, grande apreciador dos clássicos, enviou-me, à velocidade de um clique (Whatsapp), cópia do primeiro exemplar da Revista da Faculdade de Direito da Paraíba, datado do ano de 1953.

Nela encontrei, como uma boa surpresa, artigo do então Professor Mário Moacyr Porto[4], no qual, acompanhando a marcha do tempo, ressalta a tendência, numa transformação progressiva do Estado de Direito, de superação do individualismo jurídico em favor dos valores de solidariedade social.

É enfocada, diante da percepção do constituinte de 1946 (art. 147, CF), a previsão da função social da propriedade. Ultrapassando – e muito – a seara descritiva, o texto, numa antecipação ao Código Civil de 2002 (art. 421)[5], traz análise crítica para descortinar um perfil equitativo dos contratos.

A inquietação para descobrir inovações – típica do cientista – não parou por aí. Alude Mário Porto, diante da progressiva socialização das relações jurídico-privadas, à alforria do magistrado à letra rígida da lei, para igualmente perseguir a finalidade desta.

Rematando, destaca, com a invocação da funcionalidade do art. 5º da então Lei de Introdução ao Código Civil, ao fenômeno que denominou, porventura numa analogia terminológica com o praticado no âmbito dos contratos, de dirigismo contratual. A densidade da lição é aferível pelas palavras do mestre:

“É a consagração do dirigismo jurisprudencial, para usar de uma expressão de JOSSERAND, a licença para legitimar a decisão com os propósitos finalísticos da lei. CARNELUTI ensina, em termos aparentemente subversivos, que o Juiz deve ser imparcial em relação às partes e parcial em relação ao litígio, arguindo que o interesse em jogo, de maior ou menor significação para a vida de um grupo, é que deverá informar o magistrado na sua tarefa essencial de construir a paz e o bem estar da comunidade, através da aplicação da lei e segundo o critério teleológico do bem estar comum”[6].

A lição dos mestres revela a adequada razão de ser do Direito.  

[1] Editorial UNIJURIS: Havana, 2020.

[2] Para que se possa bem compreender a visão de Duguit, eis a transcrição do seu traço substancial, conforme publicação em solo pátrio: “De fato, o homem nasce membro de uma coletividade; viveu sempre em sociedade e só pode viver em sociedade, e o ponto de partida de qualquer doutrina sobre o fundamento do direito deve ser, sem dúvida, o homem natural; mas o homem natural não é o ser isolado e livre dos filósofos do século XVIII; é o indivíduo implicado nos laços da solidariedade social” (Fundamentos do Direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 15). Na realidade, cuida-se da publicação da introdução da edição portuguesa do Manuel de Droit Constitutionnel, pela Editorial Inquérito (1940), a partir de tradução de Eduardo Salgueiro.

[3] Em “O romance de minha da vida”, Leonardo Padura noticia que, na segunda metade do século XIX, Havana, pela presença de inúmeros escritores, pintores e músicos, chegou a ser conhecida como “a Atenas de Cuba”.

[4] Individualismo jurídico e direito social, pp. 21-31.

[5] Trata-se da positivação da função social do contrato.

[6] Ibid., p. 31.

Edilson Nobre é magistrado, presidente do TRF-5 e professor

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