Qual o limite de liberdade de expressão dos juízes no Brasil?
Os autores tiveram a oportunidade de se manifestar a respeito do tema, notadamente no artigo de 2019, “Juízes menos cidadãos que os demais!”, no qual propusemos algumas reflexões.
O assunto volta a estar em voga, desta vez em um cenário nacionalmente mais polarizado, com a edição do Provimento n. 135/2022, do Corregedor Nacional de Justiça, o ministro do Superior Tribunal de Justiça Luís Felipe Salomão.
Embora a aludida normativa permita várias reflexões, o objeto deste artigo é tratar da amplitude da livre expressão dos juízes frente ao novo provimento.
Dentre as obrigações impostas aos juízes, estão as de “manter conduta irrepreensível em sua vida pública e privada e adotar postura especialmente voltada a estimular a confiança social acerca da idoneidade e credibilidade do processo eleitoral brasileiro e da fundamentalidade das instituições judiciárias” (art. 2°, caput).
Destaca, em seu art. 3°, que são vedadas aos magistrados sob jurisdição do CNJ, o que só exclui os ministros do Supremo Tribunal Federal, manifestações públicas, inclusive online, “ainda que em perfis pessoais próprios ou de terceiros, que contribuam para o descrédito do sistema eleitoral brasileiro ou que gerem infundada desconfiança social acerca da justiça, segurança e transparência das eleições”, bem como associar sua “imagem pessoal ou profissional a pessoas públicas, empresas, organizações sociais, veículos de comunicação, sítios na internet, podcasts ou canais de rádio ou vídeo que, sabidamente, colaborem para a deterioração da credibilidade dos sistemas judicial e eleitoral brasileiros ou que fomentem a desconfiança social acerca da justiça, segurança e transparência das eleições”.
O mesmo dispositivo diz que “é estimulado o uso educativo e instrutivo das redes sociais e de canais de comunicação, para fins de divulgação de informações que contribuam com a promoção dos direitos políticos e da confiança social na integridade dos sistemas de justiça e eleitoral brasileiros” (§2°).
De plano, e como veremos é um entendimento razoável, reconhece-se a necessidade de se exigir de todos os membros da Magistratura postura condizente com o cargo que ocupam, uma vez que sobre seus ombros pesa o dever de decidir, com imparcialidade, sobre assuntos de interesse privado e público. A força dos magistrados está na credibilidade de suas manifestações que englobam seus caráter e postura.
É também o papel do Senhor Corregedor atuar nesse ponto, orientando e apoiando a Magistratura e sancionando, após o contraditório e a ampla defesa, os casos pontuais que constituam violação direta aos deveres impostos aos juízes.
As principais normas brasileiras que versam sobre a conduta dos juízes são a Constituição Federal e a Lei Orgânica da Magistratura – LOMAN (Lei Complementar n. 35/1979). Por exemplo, aos juízes é vedada a atividade político partidária (CF, art. 95, parágrafo único, III), devem cumprir com serenidade as disposições legais, tratando a todos com urbanidade e manter conduta irrepreensível na vida pública e particular (LOMAN, art. 35, I, IV e VIII). Além disso, não podem os magistrados manifestarem-se “por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério” (LOMAN, art. 36, III).
Outra normativa relevante é o Código de Ética da Magistratura, editado pelo CNJ em 2008 valendo-se do poder previsto na Constituição de expedir atos regulamentares (CF, art. 103-B, §4°, I). Trata-se de ato administrativo cuja função seria a de regulamentar o que já previsto na Constituição e na LOMAN, vedada a extrapolação sob pena de inovação do ordenamento. Ela delineia quais devem ser os comportamentos esperados de um juiz, notadamente ao exigir que aja em conformidade com a dignidade, honra e decoro próprios da função.
Embora pareça que tais determinação soem abertas e deem azo a sanções inesperadas, a dignidade, honra e decoro são elementos morais que podem ser facilmente situados no tempo e espaço. Não se espera de um magistrado que se comporte como um cavalheiro inglês do século XIX, aliás, se o fizer terá problemas. Mas é justa a expectativa que se comporte em conformidade com a moral própria da sociedade em que vive, somada a uma conduta mais restritiva em razão do poder que titulariza.
Por exemplo, a sociedade espera que um padre tenha um comportamento muito mais contido e digno que um humorista de televisão, evitando certas palavras e condutas. Da mesma forma o magistrado: não se espera que seja um sacerdote com votos de castidade e silêncio, nem que se submeta a uma hierarquia mais severa do que o militar, mas que se comporte com a seriedade e sobriedade necessárias.
Talvez contando justamente com essa conduta presente no imaginário popular, e seguida pela esmagadora maioria dos magistrados, que a manifestação de alguns juízes notadamente em redes sociais se sobressaía pela, usando um eufemismo, maneira despojada de se comunicar.
A moralidade é um consenso coletivo de determinada sociedade em determinada região (1), e por isso não é algo arbitrário. Quanto às condutas esperadas de qualquer pessoa, nada que não seja imoral é proibido ao magistrado. Contudo, existem obrigações mais graves que o cargo impõe ao juiz que não são impostas aos demais.
Não fere o decoro que membro da Magistratura use biquini ou sunga na praia, mas não se pode dizer o mesmo usá-los no tribunal, pior ainda, durante a audiência. Imagine um juiz receber o advogado de bermuda em seu gabinete. Não há problema amigos saiam para jantar, mas é um consenso moral que o juiz jantar com uma das partes ou advogado de um processo sob sua tutela, de forma particular, causa estranheza.
Por outro lado, causaria espécie que um juiz viesse a ser punido, v.g., apenas em razão de sua fé ou de sua sexualidade. Ou sancionado fosse porque não iniciara a sessão de julgamento com uma oração. O consenso moral atual brasileiro não considera nenhum desses elementos como sendo inadequados.
Portanto, a conduta moral, realizada com honra, dignidade e decoro, não admite interpretação arbitrária, mas se funda em um consenso de determinado grupo social em determinado período e região.
A livre expressão dos juízes, porém, é tema sensível de interesse internacional, como veremos em breves exemplos.
Em 2015, a Comissão de Veneza, órgão consultivo sobre questões constitucionais do Conselho da Europa, na Opinião n. 806/2015, foi consultada pelo então presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos para que apresentasse comparação entre os vários ordenamentos envolvendo liberdade de expressão, de associação, direito de reunião pacífica e direitos políticos dos juízes (2).
A conclusão foi de que é garantida a liberdade de expressão aos juízes, mas que em razão dos deveres e responsabilidades do cargo e a necessidade de garantir a imparcialidade e a independência do Judiciário são válidas restrições pontuais, mas, pelas mesmas razões de independência do Judiciário e garantia da separação dos poderes, a Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) entende que qualquer interferência na livre expressão dos juízes demanda uma análise minuciosa.
A CEDH manifesta que é essencial que, ao se analisar a proporcionalidade da interferência da livre expressão dos juízes em cotejo com seus deveres e responsabilidades, considere-se as circunstâncias concretas do caso, a posição do magistrado na estrutura do Judiciário, o conteúdo e o contexto em que feita a declaração e a natureza e severidade da penalidade. Outros elementos sopesados são os contextos legal, político e histórico em que o debate acontece, se o assunto é de interesse público ou se é feito num contexto de campanha eleitoral, bem como a existência de uma crise democrática ou o rompimento da ordem constitucional.
Em 2019, a Comissão Internacional de Juristas (ICJ) apresentou ao Conselho de Direitos Humanos da ONU documento defendendo a liberdade de expressão, associação e assembleia pacífica de juízes e promotores de justiça (3). Algumas conclusões desse documento, cujas premissas valem para formas de expressão online e offline, são as de que os juízes e promotores possuem liberdade de expressão, associação e assembleia como qualquer cidadão, e a limitação deste direito deve submeter-se aos parâmetros das leis internacionais, inclusive no tocante à necessidade e proporcionalidade, mas se considera válida quando tem por objetivo garantir a imparcialidade e a independência do Judiciário, desde que expressamente justificada.
A lei internacional reconheceria a importância do exercício da livre expressão por juízes e promotores como forma de evitar ameaças à independência do Judiciário e à integridade de seus membros; proteger a administração da justiça e promover e garantir esse direito humano fundamental.
No mesmo ano, o Conselho de Direitos Humanos da ONU (CDH) divulgou o relatório sobre a independência de juízes e promotores, A/HRC/41/48, e, com base nos padrões internacionais e regionais e na jurisprudência das cortes regionais ofertou aos Estados, e também aos juízes e promotores individualmente, recomendações sobre como lidar com o tema (4).
Algumas conclusões são as de que, conforme os Princípios Básicos sobre a Independência do Judiciário, os Princípios de Conduta Judicial de Bangalore e as Diretrizes de Atuação do Ministério Público, além de outros parâmetros internacionais, juízes e promotores possuem direito à livre expressão como qualquer cidadão, mas que, em razão de seus deveres, devem agir em conformidade com a dignidade do cargo e proteger a imparcialidade e a independência do Judiciário, sendo importante para clarificar esses limites a jurisprudência das cortes regionais de direitos humanos nos sistemas europeu e interamericano.
As restrições à liberdade de expressão de juízes e promotores somente são legítimas quando decorrentes de lei e quando necessárias em uma sociedade democrática com objetivos legítimos, como proteger a independência, a imparcialidade e a autoridade das instituições.
Ainda, existindo situações nas quais um juiz, como membro da sociedade, considere que tem o dever moral de se manifestar, “a jurisprudência dos tribunais regionais estabeleceu que, nas situações de ruptura da ordem constitucional, os juízes podem até mesmo ter o dever de falar em favor da restauração da democracia e do estado de direito”.
E mais, tendo documentado várias formas de interferência no Judiciário, observou que nem todas as medidas disciplinares adotadas em democracias foram necessárias para manter a confiança no Judiciário. Em alguns casos essas sanções denotavam ser expedientes para punir juízes e promotores por opiniões ou por atos realizados no exercício da função, e a severidade de certas punições tiveram o efeito de atemorizar os demais para desencorajá-los a agir e se expressar.
Dentre as recomendações feitas pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU estão a de que juízes, promotores e também suas associações, em um processo transparente, participem dos debates sobre regulações e orientações pontuais sobre sua livre expressão, lembrando que as restrições devem ser estritamente essenciais em democracias como forma de assegurar a autoridade do Judiciário e do Ministério Público e a independência e imparcialidade dos juízes e promotores.
Por fim, entre várias orientações, importante anotar a sugestão de que os juízes e promotores sejam auxiliados e orientados (não doutrinados), antes de sancionados, sobre princípios éticos e a importância de resguardar o Judiciário e o Ministério Público. Inclusive, que as associações mantenham canal de comunicação para que os profissionais em dúvida sobre certos temas possam ser amparados.
Para encerrar os exemplos, o Conselho de Juízes Europeus publicou em fevereiro de 2022 relatório com mais de 200 páginas contendo respostas a um questionário sobre a liberdade de expressão dos magistrados da Europa (5) no intuito de subsidiar a opinião do grupo de trabalho a ser apresentada no final deste ano (6).
Entre as perguntas feitas destacamos as que questionam se os juízes podem confiar no direito constitucional à livre expressão, no exercício do cargo e/ou no âmbito privado; se há previsão legal que proteja esse direito; a existência de restrições éticas ou legais que o restrinjam e se elas teriam vínculo com a independência e imparcialidade, confiança no Judiciário ou seu prestígio e imagem e a confidencialidade dos processos. Ainda, questiona quais as consequências disciplinares aos juízes que a violam e quais os critérios que são considerados na severidade da sanção.
Ora, é consenso internacional que os juízes possuem o direito à livre expressão, cuja limitação pontual, para ser legítima, depende de lei debatida de forma transparente e restringir-se à defesa da independência e imparcialidade dos juízes e credibilidade do Judiciário.
Assim, embora concordemos com o Ministro Corregedor sobre a necessidade de limites, entendemos que o cabedal normativo existente basta para assegurar essa liberdade e analisar eventuais excessos de forma pontual, concreta e específica.
Seria excessiva e mais severa que a teoria do risco integral limitar de forma geral e preventiva a livre expressão dos juízes com tipos abertos de interpretação incerta e ausente de parâmetros, diferentemente da moralidade, e a vedação a que se associem, pessoal ou profissionalmente, a quem colabore para a “deterioração da credibilidade dos sistemas judicial e eleitoral brasileiros”.
Não obstante a compreensível preocupação do Ministro Salomão, nossa visão é de que já existem no ordenamento mecanismos para coibir a má conduta pontual sem limitar o direito fundamental à livre expressão dos juízes reconhecida internacionalmente, considerado dever em momentos de risco democrático e quebra da ordem constitucional como vimos.
Entretanto, vedar da forma ampla como feita no inciso II do artigo terceiro do provimento ora comentado, e até mesmo não explicitar quais redes sociais, qualquer tipo de contato de Magistrados com pessoas ou entidades que façam críticas aos sistema da Justiça Eleitoral nos parece exacerbado, pois todos os Juízes precisam estar conectados com a sociedade como um todo e a partir de agora, em prevalecendo, os Juízes terão que fazer um filtro bem maior com quem interagem, ou até mesmo deixarem de prestar os necessários esclarecimentos a imprensa de um modo geral.
Não se pode tolher a liberdade de pensamento e até mesmo de ir e vir dos Magistrados além do necessário para o legítimo exercício do cargo ocupado, daí porque mesmo se tendo a certeza de que alguns colegas exageram nessas críticas e até mesmo que de forma apaixonada tendam para um lado e outro dessa polarização ideológica, tais colegas deveriam responder individualmente por tais excessos, não limitando ainda mais a classe inteira de uma forma que não se tem como a mais adequada, mesmo entendendo a peculiaridade do momento ora vivido.
O próprio provimento determina uma série de providências a serem tomadas tanto pelos Magistrados, nesse caso os eleitorais, bem como os Tribunais, que passarão a enviar relatório de 10 em 10 dias, logo de modo indiscutível se terá um grande trabalho com a análise de tais relatórios, sendo interessante ponderar que o trabalho mais específico de se apurar os excessos seja talvez bem menor do que o ora determinado, daí porque talvez nessa parte a recomendação com o convencimento patente dos próprios considerandos do provimento, se tenha como muito mais eficaz, consolidando-se a própria legitimidade do ato com apoio maciço da maior parte da carreira e isolando aqueles que insistem em ir contra a realidade dos fatos no tocante ao sistema da Justiça Eleitoral.
Como magistrado com mais de trinta anos de carreira, o Ministro saberá se postar com a serenidade que lhe é usual, equilibrando a liberdade de expressão dos juízes com as necessárias independência, imparcialidade e credibilidade do Judiciário exigida em especial nesse momento peculiar.
Edu Perez de Oliveira
Juiz de Direito do TJGO
José Herval Sampaio Júnior
Juiz de Direito e Professor da UERN
REFERÊNCIAS:
(1) GARCIA, Emerson. ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. Saraiva. 2014. p. 129
(2) https://www.venice.coe.int/webforms/documents/default.aspx?pdffile=CDL-AD(2015)018-e
(4) https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G19/118/68/PDF/G1911868.pdf?OpenElement
(5) https://rm.coe.int/compilation-of-all-responses/1680a5c953
(6) https://www.coe.int/en/web/ccje/opinion-25-on-the-freedom-of-expression-of-judges