Um texto anterior ao Provimento 135 do CNJ*
A higidez da imagem das instituições justifica o sacrifício, em abstrato, da liberdade de expressão e pensamento dos juízes como cidadãos?
Em 4 de julho de 1776, na cidade de Filadelfia, os assim chamados Fundadores, representantes das treze colônias britânicas, firmaram a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, cindindo suas relações com a Grã-Bretanha.
De todo o texto, extrai-se essa famosa passagem:
Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, dentre os quais estão vida, liberdade e a busca da felicidade. (tradução livre e grifo nosso)
Não muito diferente é o trecho do Manifesto de 1º de Agosto de 1822, assinado pelo Imperador Dom Pedro I:
“Então as Províncias Meridionais do Brasil, coligando-se entre si, e tomando a atitude majestosa de um povo que reconhece entre seus direitos os da liberdade, e da própria felicidade lançaram os olhos sobre mim, o filho do seu Rei, e seu amigo (…)”.
A liberdade é um direito auto-evidente, e um direito tão caro que muitos deram, e ainda dão, sua vida para garanti-la para si e para os outros.
Na antiguidade, a escravidão era um conceito distinto daquele do comércio escravagista europeu da época, resumindo-se, grosso modo, à antítese da liberdade. Para os gregos e romanos antigos um escravo não poderia viver uma vida virtuosa, faltando-lhe autonomia necessária para tanto.
É nesse sentido que os Fundadores empregavam essa visão clássica do que era a escravidão em contraposição à liberdade quando se opunham ao Império Britânico, decorrendo daí a inserção textual de que a tirania a que eram submetidos ameaçava os direitos inalienáveis do homem: a vida, primeira lei da natureza, a liberdade, tal qual inserta na visão dos antigos, que seria não só a oposição à escravidão, mas também à dominação pelo mais forte, e o direito à busca da felicidade.
Nesse contexto da filosofia antiga, a tirania se torna uma ameaça à busca pela felicidade, porque tal busca confunde-se com a busca pela virtude, e não é possível fazê-lo na condição de escravo ou oprimido, ou seja, sem autonomia. (CONKLIN, 2015, p. 236/237).
A historia da humanidade, portanto, é a história da luta contra a tirania, a ditadura e o totalitarismo e pela vitória da liberdade: de viver, de amar, de ir e vir e também de pensar e dizer o que se pensa.
Ninguém pode ser feliz se não for livre.
Por isso, recebemos com espanto a notícia de que o Conselho Nacional de Justiça, por seu atual presidente, o Ministro Dias Toffoli, pretende regulamentar o uso das redes sociais pelos juízes, já tendo designado um grupo de trabalho (https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/05/07/toffoli-defende-parametros-de-conduta-para-manifestacoes-de-juizes-nas-redes-sociais.ghtml).
Nas palavras do Ministro:
“Nós, enquanto instituições, temos que ter nossos parâmetros de conduta. Isso não significa mordaça, isso não significa censura, isso significa defesa das nossas carreiras, isso significa defesa das nossas instituições. Os juízes não podem ter desejo. O seu desejo é cumprir a Constituição e as leis”.
A ideia é que esse grupo de trabalho deverá apresentar um relatório e propostas de uso de redes sociais pelos magistrados à Comissão Permanente de Eficiência Operacional e Gestão de Pessoas.
Por mais que se tenha como nobre o possível escopo da parametrização presente no ato que criou o grupo, não se delimitou de modo muito claro e talvez isso ocorra porque quando se trata de limitar a liberdade expressão e pensamento, que não é absoluta, esta deva se fazer em cima de casos concretos, correndo-se o risco de não se conseguir em alguns casos, ficando realmente para a reparação. Mas, para os juízes deve valer essa limitação prévia em razão de sua função judicante? E sua qualidade de cidadão, sempre deve ser olvidada? Para manter a independência funcional, vale tudo? (https://joseherval.jusbrasil.com.br/artigos/474538868/o-juiz-perde-a-qualidade-de-cidadao-pelo-exercicio-do-cargo )
Em suma, pretende-se limitar ainda mais a já limitada liberdade dos magistrados, cujos deveres estão regulados pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LOMAN, e são bastante claros.
As redes sociais são espaços para troca de ideias, um intercâmbio positivo que reduz distâncias e amplia o conhecimento humano. Não são tribunais, não são espaços estatais, mas privados e tem os limites próprios da cidadania e os juízes como quaisquer cidadãos estão a ela vinculados.
Recentemente já se falou do risco à liberdade de imprensa (https://www.mementomori.blog.br/blog/livre-imprensa-democracia-e-justica) e de expressão dos humoristas (https://www.mementomori.blog.br/blog/quando-ate-os-palhacos-forem-calados). Agora o risco é maior, porque se trata de calar os juízes. Se ambos, imprensa e humoristas, ou quem quer que seja, tenha seu direito ameaçado, poderá recorrer ao Judiciário. Mas se os próprios juízes não tiverem liberdade, não haverá onde se socorrer. É o pensamento de Ruy Barbosa, ao asseverar que “[…] até onde forem as contingências da liberdade violada, até aí forçosamente há de chegar a tutela jurídica dos tribunais.” (Rio de Janeiro, DF, Obras Completas de Rui Barbosa. V. 19, t. 3, 1892. p. 171)
Como dito, já existe uma série de normas de conduta que devem ser seguidas pelos magistrados. Se a manifestação dos juízes as ferir, existe todo um procedimento administrativo hábil a sancioná-los, devendo ser instaurado, em cada caso concreto, o devido processo legal, punindo-se, ao final, se for o caso, e não a todos, como, mais uma vez, pode vir um ato, em abstrato, a tolher direito dos magistrados. (https://joseherval.jusbrasil.com.br/artigos/590467600/que-se-puna-um-a-um-e-nao-a-todos )
O que parece, contudo, é que a liberdade de expressão dos magistrados tem incomodado. Não porque cometam ilícitos ou excessos, o que se dá em casos pontuais, mas porque a Magistratura concursada, que forma a base dessa pirâmide, (ainda) é respeitada nos milhares de municípios por onde se espalha. A opinião do juiz é ouvida e considerada por muitos.
Agora surge o risco potencial da censura, não bastasse a constante criação de novos deveres diários aos juízes em uma carreira que há muito deixou de ser atraente, inclusive na remuneração e carga de trabalho, vez que há opções melhores e menos cobradas.
Ser juiz é a segunda profissão mais estressante, perdendo apenas para médicos de UTI (http://www.amc.org.br/novo/2019/04/07/especialista-aponta-a-profissao-do-juiz-como-a-segunda-mais-estressante/). Com essa vedação à livre expressão tem altas chances de chegar ao primeiro lugar, uma vez que sequer em seus momentos de interação social o magistrado poderá parar de ser magistrado.
Nunca desligar da toga é um castigo, não é defesa da carreira. É submeter o indivíduo a uma sensação de constante vigilância, de medo, de receio de ser arrestado a qualquer momento, como em um regime totalitário.
Já dizia Eduardo Couture, que “o dia em que o juiz tiver medo, nenhum cidadão dormirá tranquilo”. Medo é o que sentem os magistrados, vendo dia após dia ruir a Magistratura sob o peso inexorável da burocracia, das limitações administrativas e das ameaças, carregados e mal reconhecidos, como cavalos de Schilda. A insegurança impede qualquer estabilidade emocional.
Ora, para toda e qualquer conduta inadequada do magistrado, seja no mundo físico, seja nas redes sociais, já existe previsão de sanção e que ela ocorra sempre em concreto e nunca em abstrato. Por exemplo, se ofende alguém, há os crimes contra a honra; se critica a decisão de um colega, há punibilidade na LOMAN, e se, de qualquer modo, age de forma parcial, os códigos prevêem a arguição de suspeição para afastá-lo do processo.
Assim, por qualquer ângulo que se observe a norma que se pretende criar não é só desnecessária, também é perigosa à democracia, por suprimir um direito auto-evidente: a liberdade e que nesse pequeno texto se busca defender a todo custo.
Ora, se o juiz deve ser imparcial não só nos processos, mas também nas redes sociais, não dista o dia em que não poderá mais torcer por um time de futebol, ou será vedado de professar sua religião, afinal, não pode ter desejos, não pode ter liberdade: deve ser uma máquina de repetir precedentes. As distinções de atuação do Juiz e do cidadão que também é Juiz tem que ser evidentes e quando expostas com clarezas e nos limites legais já existentes, são mais que suficientes.
Enquanto se demanda que os juízes façam parte de sua comunidade, afinal, a Constituição exige que morem na comarca, que conheçam o mundo onde vivem, contraditoriamente esses mesmos magistrados são ameaçados de punição por conviverem com outros seres humanos em redes sociais.
Nem a um criminoso convicto se nega acesso à sociedade, à vida política natural do ser humano. Lembremos: não é possível ser feliz sem ser livre.
As críticas fazem parte da vida social e são essenciais a qualquer regime democrático. Somente regimes totalitários ou ditatoriais cassaram a liberdade de expressão.
Já dizia Ruy Barboa, o Águia de Haia:
“Há perigos e males na liberdade, mas a sua compensação é infinitamente superior às efêmeras e aparentes vantagens da compressão, qualquer que seja o tom paternal da sua brandura, e o tino dos seus agentes.”
(Obras Completas de Rui Barbosa. V. 10, t. 2, 1883. p. 16)
Qualquer alternativa à liberdade será sempre muito pior.
Normas já existem para sancionar qualquer excesso. Partir do pressuposto, como tem ocorrido, de que o magistrado está sempre errado e deve cada vez mais ser isolado, castrado, suprimido, como um eunuco moral e espiritual, é um risco à República, e os mais afetados com isso serão os brasileiros, que poderão contar apenas com uma Justiça insípida, eco de embolorados livros que seguiram na contramão da história e em nada se relacionam com a realidade.
O ministro Dias Toffoli é republicano. Conhece o valor da democracia e da força das instituições, notadamente do Judiciário e de sua independência para valorar como se deve o respeito à liberdade, logo, mesmo tendo a missão de lutar para preservar a imagem das instituições, em especial as da Justiça, assegurará, aos magistrados, o seu patente direito à liberdade de pensamento, não absoluto, contudo, não menor do que de qualquer outro cidadão!.
Edu Perez de Oliveira
Juiz de Direito do TJGO
José Herval Sampaio Júnior
Juiz de Direito e Professor da UERN
*Texto que publicamos quando CNJ lançou grupo de trabalho para tratar de normativade semelhante quanto à nossa liberdade, a época estava como Presidente da AMARN e que se aplica no presente contexto do provimento 135 e na qual faremos novo texto abordando as peculiaridades do momento eleitoral e as novidades no ato que se necessita, no mínimo, de aperfeiçoamentos para o devido equilíbrio entre os valores a serem tutelados.
BIBLIOGRAFIA:
Alunos online. Caifazes e a luta pela abolição no Império. https://alunosonline.uol.com.br/historia-do-brasil/caifazes-luta-pela-abolicao-no-imperio.html. Acesso em 8.5.2019, às 23h52
Câmara Federal. Proclamação de 1º de Agosto. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/procla_sn/anterioresa1824/proclamacao-41282-1-agosto-1822-575736-publicacaooriginal-99010-pe.html, acesso em 8.5.2019, às 20h12
CONKLIN, Carli N. Origins of the Pursuit of Happiness, 7 Wash. U. Jur. Rev. PP. 195-262 (2015). Available at: http://openscholarship.wustl.edu/law_jurisprudence vol7/iss2/6
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em 2.04.2019, 20h
Encyclopaedia Britannica https://www.britannica.com/topic/Declaration-of-Independence#ref338515 acesso em 8.05.2019, às 20h.
SENECA, Lucius Annaeus. Moral letters to Lucilius. Letter 71: On the supreme good. https://en.wikisource.org/wiki/Moral_letters_to_Lucilius/Letter_71. Acesso em 08.05.2019, às 20h35.