Pouco mais de dois anos depois de o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomendar um protocolo de medidas para proteger magistradas e servidoras da violência doméstica, tribunais de diversos segmentos de Justiça identificam a busca ainda tímida pelos serviços de proteção oferecidos a partir das orientações do documento. Um desafio comum aos órgãos que iniciaram a adoção do protocolo de segurança é convencer as mulheres de seus quadros funcionais sobre a importância de pedir ajuda aos núcleos de acolhimento.
A pesquisa Violência Doméstica e Familiar contra Magistradas e Servidoras do Sistema de Justiça, coordenada por Fabiana Cristina Severi e Luciana de Oliveira Ramos, em 2022, aponta que 40% das magistradas e das servidoras já sofreram algum tipo de violência doméstica. Antes da tabulação desses dados, em 2021, o CNJ já havia editado a Recomendação n. 102, que orienta a adoção do Protocolo Integrado de Prevenção e Medidas de Segurança Voltados ao Enfrentamento à Violência Doméstica Praticada em Face de Magistradas e Servidoras.
No ano passado, o Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM) implementou ações coordenadas para assegurar a proteção de mulheres que estejam enfrentando essas situações. Mesmo após a consolidação do trabalho, a procura pelos serviços está aquém do esperado: em um ano de funcionamento, foi registrado, oficialmente, apenas um caso. O fato notificado envolve um casal em que ambos trabalham no tribunal. A mulher foi vítima de violência após o término do relacionamento. Por trabalharem no mesmo prédio, o tribunal adotou medidas para assegurar a proteção da servidora, que levou o caso à Coordenadoria da Mulher.
A servidora do TJ-AM Cyntia Rocha Mendonça integra a Comissão Permanente de Segurança Institucional, uma das instâncias responsáveis pelas ações inseridas no protocolo. Ela explica que o tribunal de Justiça amazonense se preparou para receber magistradas, servidoras e terceirizadas em todas as fases da denúncia de violência doméstica, incluindo consultas, oficiais ou não. Os casos de violência são levados diretamente para a Coordenadoria da Mulher, onde é aplicado um questionário de avaliação de risco e, posteriormente, a situação é analisada pelo Centro de Inteligência da Justiça Estadual do Amazonas (CIJEAM).
A Ouvidoria da Mulher do Poder Judiciário Estadual, coordenada pela desembargadora Graça Figueiredo, atende as demandas internas e externas, acolhendo mulheres por meio de uma equipe multidisciplinar, que faz os encaminhamentos necessários. Cabe à Comissão de Segurança oferecer as opções para proteção da mulher, desde escolta e ronda e até a alteração do local de trabalho. “O serviço de escolta é oferecido tanto para magistradas quanto para servidoras e terceirizadas. A decisão final sobre quais medidas adotar é sempre da vítima”, afirma Cyntia.
Embora o Poder Judiciário esteja preparado para o combate à violência doméstica e tribunais de vários segmentos de Justiça estejam se articulando para o cumprimento da recomendação do CNJ, ainda existe um entrave para a adesão aos programas criados: o constrangimento das mulheres, em especial de magistradas, na hora de pedir ajuda.
“As magistradas não querem se expor perante seus pares, mesmo que todo o processo tramite de forma sigilosa. Os casos existem, mas eles não são reportados internamente. E isso ocorre em todo país, até mesmo com juízas que atuam em processos de violência doméstica. Já as servidoras e terceirizadas buscam os serviços com alguma regularidade, porém sempre na forma de consultas extraoficiais. Na maioria das vezes, relatam situações hipotéticas para saber o que aconteceria se o fato se concretizasse”, lamentou Cyntia.
RETRATO DA VIOLÊNCIA NO JUDICIÁRIO
O estudo realizado por Severi e Ramos aponta que alguns fatores são determinantes para essas vítimas se recusarem a levar o problema ao conhecimento das autoridades ou instâncias preparadas para esse acolhimento. Entre as questões levantadas, estão o receio de verem suas relações profissionais, pessoais e familiares estigmatizadas pela violência doméstica. Além disso, o medo de retaliação por parte do agressor, a culpa pela violência sofrida, as pressões familiares e a vergonha social também têm enorme influência sobre a vítima.
Do quantitativo investigado pelas pesquisadoras, 51% eram servidoras e 49% eram juízas, sendo que 61% das respondentes (magistradas e servidoras) atuam na Justiça Estadual, 19% na Justiça Federal, 18% são da Justiça do Trabalho, 1% do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e 0,3% do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Das servidoras e magistradas que afirmaram ter sofrido algum tipo de violência, 81% relataram ter vivenciado o problema há mais de um ano da data da pesquisa. Ao mesmo tempo, 13% disseram ter sofrido violência nos últimos 12 meses e 6% das mulheres ouvidas afirmaram que viviam agressões domésticas no momento na época em que participaram da pesquisa.
Quanto ao tipo de agressão sofrida por magistradas e servidoras, a violência psicológica é a que tem maior ocorrência, com 92%. A violência moral foi indicada por 47%, seguida da violência patrimonial (32%) e violência física/ameaça (31%). Por último, a violência sexual apareceu na resposta de 16% das mulheres participantes do estudo.
Entre as mulheres ouvidas que foram vítimas de violência, 86% não buscaram o Judiciário para denunciar o ocorrido. Dos 14% que buscaram auxílio no Sistema de Justiça, 76,5% eram servidoras e 23,5% eram juízas.
CONSCIENTIZAÇÃO
A preocupação em assegurar o acolhimento leva os tribunais a investir na realização de encontros, cursos e outros meios de sensibilização. Nesse sentido, o Tribunal Regional do Trabalho da 15.ª Região (Campinas e região) criou o Canal Mulher, ambiente virtual que apresenta dados sobre a violência contra a mulher, informa sobre os canais de atendimento e de suporte e disponibiliza a íntegra do protocolo de segurança e magistradas.
O Canal Mulher é o resultado de uma série de ações anteriores desenvolvidas pelo TRT-15, que foram idealizadas pela coordenadora do Comitê de Gestão de Pessoas, desembargadora Luciane Storer. No final de 2022, ela criou um projeto de oficinas para servidoras e terceirizadas que durou pouco mais de um ano, com explicações sobre como se configuram a violência doméstica e o assédio no trabalho e no transporte público e, ainda, sobre as medidas de proteção disponíveis.
Desde que os trabalhos do Comitê e os serviços do Canal Mulher se iniciaram, somente um caso de violência contra a mulher foi registrado internamente e está sendo tratado pela comissão de prevenção ao assédio. A desembargadora avalia que ainda existe um trabalho informativo e de conscientização a ser feito. Segundo ela, o canal tem sido mais usado por servidoras, estagiárias e terceirizadas, enquanto as magistradas ainda preferem não se mostrar. “A necessidade de informar as mulheres é contínua. Trata-se de uma cultura patriarcal e machista, na qual a mulher ainda tem sérias dúvidas se está sendo vítima de violência”, afirmou Luciana Storer.
VÍTIMAS FATAIS
Nos últimos anos, o Poder Judiciário tem enfrentado perdas significativas provocadas pela violência contra mulheres de seu quadro funcional. Os encontros entre vítima e agressor, tantas vezes fatais, expuseram um quadro de agressões sistemáticas experimentadas por magistradas, servidoras e terceirizadas de tribunais em todo o país. Casos emblemáticos têm inspirado a mobilização da Justiça e impõem esforços para que as medidas de proteção se efetivem.
Em 2013, a juíza Glauciane Chaves de Melo foi assassinada a tiros pelo ex-companheiro durante o trabalho no Fórum da Comarca de Alto Taquari, do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJ-MT). A magistrada foi casada por quase dez anos com o enfermeiro Evanderly de Oliveira, que não aceitava o término da relação. A juíza recebia ameaças, mas não registrou queixas nem limitou o acesso do ex-cônjuge ao seu local de trabalho. Em homenagem à magistrada, o TJ-MT lançou o Prêmio Juíza Glauciane de Melo de Proteção às Vítimas de Violência Doméstica voltado para iniciativas que contribuem para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher em Mato Grosso.
Outro fato trágico levou o CNJ a também criar um prêmio para dar visibilidade a iniciativas nacionais, dentro e fora do Judiciário, para proteger mulheres de agressores tão íntimos. O Prêmio CNJ Juíza Viviane Vieira do Amaral reverencia a memória da juíza do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) vítima de feminícidio praticado, em dezembro de 2020, pelo ex-marido.
Servidora da Comarca de Itajaí, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC), Indira Mihara Felski Krieger foi morta em 2022 pelo namorado, Leonardo Trainotti, em um episódio que envolveu também roubo e estelionato. Indira se tornou símbolo da luta para assegurar a segurança de magistradas, servidoras e terceirizadas do TJ catarinense.
Thays Machado, servidora do TJ-MT, foi assassinada, em 2023, pelo ex-companheiro Carlos Alberto Gomes Bezerra, filho do deputado federal Carlos Bezerra (MDB). A servidora e o companheiro dela na época, William Machado, foram mortos a tiros. As vítimas já haviam sido ameaçadas pelo ex-companheiro de Thays no primeiro encontro romântico que tiveram. Carlos perseguiu o casal até a porta da delegacia. A perseguição se repetiu até o dia dos assassinatos.
Com informações do CNJ