Duas mulheres que expuseram nas redes sociais o que achavam ter sido uma tentativa de intoxicação por um motorista de aplicativo foram condenadas a indenizá-lo em R$ 20 mil. Após a denúncia da passageira e das postagens, a polícia constatou que o produto das suspeitas era, apenas, álcool 70º com essência de canela – e não continha substâncias capazes de provocar inconsciência.
A juíza Andrea Amaral Roman, da 2ª Vara do Juizado Especial Cível de Santos (SP), entendeu que o motorista, ao ser acusado indevidamente em postagens com grande repercussão nas redes sociais, sofreu danos à sua reputação. Além disso, pesou o fato de ele ter tido a conta suspensa pela Uber.
O caso ocorreu em novembro passado. No início de uma corrida, o motorista ofereceu álcool com essência de canela para a uma passageira higienizar as mãos; no carro, havia uma divisória de acrílico separando o condutor das pessoas que viajam no banco de trás. Minutos depois, ela pediu para desembarcar, quando teve a oportunidade de tirar fotos do carro.
Então, ela encerrou a corrida e buscou uma delegacia para contar que, após espalhar o álcool nas mãos, havia começado a passar mal, com a sensação de visão turva, tontura e asfixia. Mais tarde, escreveu um post em sua conta no Facebook e publicou um vídeo no Instagram contando sobre a situação.
Ela diz que, quando o motorista falou para ela tentar sentir a essência no álcool, lembrou de um relato de outra pessoa que leu na internet, por isso, inclusive, teria resolvido compartilhar a situação para alertar outras passageiras. “Se eu inalasse mais um pouco do que quer que fosse aquilo, teria apagado completamente”, disse no texto.
No post, ela não identifica o homem nem o veículo que ele dirigia, pois teria sido orientada na delegacia a não divulgar os dados, mas que compartilharia informações se alguém tivesse passado por situações semelhantes. No processo contra ela, justificou que não teria sido a responsável por disseminar quem era o motorista.
A identidade dele, além dos detalhes sobre o carro que ele dirigia, foram expostos por outra mulher em outras postagens que se espalharam pelas redes sociais e WhatsApp. “Esse pilantra mora na rua…”, escreveu ela ao reproduzir o perfil dele. Ela também compartilhou fotos que, como entendeu a juíza da decisão, teriam sido feitas pela mulher que fez a denúncia fundada em uma falsa percepção.
“Não se discute se houve algum xingamento ou crítica, mas a veracidade dos fatos, pois elas deveriam primeiro ter buscado as vias próprias para a obtenção do seu direito, mediante a certeza dos fatos, antes de realizar postagens”, afirmou a magistrada na decisão, do fim de junho.
Quando soube das postagens, o homem foi à delegacia e entregou o álcool. Na perícia, nenhuma substância suspeita foi encontrada. A acusação na internet antes do resultado de laudo sobre o álcool foi, nas palavras da juíza, “desmedida, abusiva e manifestamente ilegal”. A conduta expressaria uma fúria capaz de depreciar a imagem de alguém mesmo que sem provas concretas. Por isso, condenou que cada uma das mulheres indenizasse o motorista em R$ 10 mil.
O caso tramita com o número 1005495-05.2022.8.26.0562.
Intoxicação de mulheres em carros de aplicativo
O temor de serem dopadas por motoristas em corridas de aplicativo se tornou um novo pesadelo para mulheres moradoras de grandes cidades brasileiras nos últimos meses, alimentado por dezenas de relatos compartilhados nas redes sociais e notícias na imprensa. Há casos investigados em estados como Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo.
De modo geral, nos relatos, mulheres assustadas contam como, durante as viagens, elas tiveram sensações de tontura ou de que iriam desmaiar, mas conseguiram escapar antes de um desmaio – algumas até se jogam dos veículos por desespero. Também é comum que elas mencionem ter lembrado de outros casos semelhantes, por isso teriam tido um alerta a desconfiar.
Mesmo se houver essa intenção por parte de motoristas, essa intoxicação pelo ar seria pouco factível, na avaliação de especialistas em perícia toxicológica. “Aparentemente, parece improvável que se tenha esse modelo de intoxicação, porque ela demanda alta concentração de substâncias solventes. Isso dentro do carro poderia comprometer o próprio motorista, além do risco de explosão”, avalia o perito criminal Marcos Camargo, presidente da Associação de Peritos da Polícia Federal.
O uso de máscaras comuns, como a mais reforçada pff2, poderia evitar que o motorista fosse sedado, mas ele, provavelmente, também seria afetado diante do aumento da concentração da substância no ambiente. Além da perícia no veículo e em produtos que, eventualmente, sejam borrifados no ar, os testes também são capazes de detectar a presença de substâncias suspeitas no sangue e urina da pessoa que inalou.
A inalação de álcool ou outros produtos, quer estejam no ar ou em superfícies, pode causar desconfortos que podem sugerir um envenenamento, custoso nessas circunstâncias, mas suficiente para causar pânico.
“As formas mais factíveis de sedar uma pessoa de forma criminosa e com rapidez seria por meio da pressão de um tecido embebido com alguma substância depressora no rosto dela ou pela ingestão do produto, que poderia estar na água ou em uma bala, por exemplo”, diz Camargo.
Evidentemente, mulheres e meninas são os principais alvos de crimes contra a dignidade sexual. No Brasil, uma mulher foi estuprada a cada dez minutos, em média, no Brasil em 2021, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Isso representa 56,1 mil casos, que jogam terror sobre a vida cotidiana dessa população. Nesse sentido, uma viagem na companhia apenas de um desconhecido pode ser motivo de apreensão para muitas mulheres.
As mulheres lidam com relatos frequentes de violência sexual, muitas vezes envolvendo pessoas próximas. Isso impacta na sensação de insegurança. Por isso, caso desconfiem de alguma conduta, é importante que elas busquem meios de obter ajuda, gravem a corrida ou peçam para desembarcar.
“O fato de ela não estar intoxicada não pode significar que não se tenha tentado intoxicar. Não se pode descartar completamente uma tentativa e o fato de a perícia não ter constatado não quer dizer que a mulher tenha mentido. A versão da vítima também não pode ser desconsiderada, mesmo em situações que parecem improváveis”, afirma a promotora Fabíola Sucasas, do Ministério Público de São Paulo.
Caso suspeitem de uma tentativa criminosa ou tenham sido vítimas, como nos casos de sedação, elas podem registrar a situação em uma delegacia ou buscar o Ministério de Saúde e outros serviços de apoio a mulheres vítimas de violência, como a Casa da Mulher Brasileira. A partir de então, caberá investigação. “Uma boa cautela é que elas busquem a opinião de um advogado para receber orientação sobre como se preservar”, recomenda Sucasas.
Na tentativa de alertar outras mulheres, é preciso que se saiba que elas podem ser responsabilizadas quando se entende que houve abuso da liberdade de expressão. “Esse direito não é ilimitado e eventuais abusos serão julgados a partir de cada situação. Pode-se interpretar que uma vítima contou sobre algo pessoal, como ela vivenciou, ou então que se excedeu”, explica.
Com informações do Jota