A Lei da Anistia não deve ser aplicada em casos que envolvem crimes contra a humanidade ocorridos durante o regime militar (1964-1985), nos quais devem prevalecer as normas internacionais de direitos humanos internalizadas pelo Estado brasileiro.
Essa tese foi defendida pelo Ministério Público Federal (MPF) em parecer apresentado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre recurso especial contra decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) que negou o recebimento de denúncia contra um ex-agente da ditadura (Audir Santos Maciel) e dois médicos legistas (Harry Shibata e Pérsio José Ribeiro Carneiro) por envolvimento na morte de Neide Alves dos Santos, militante do então Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 7 de janeiro de 1976, aos 31 anos de idade.
O MPF defende que as normas previstas nos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Brasil devem prevalecer sobre o regramento nacional, para garantir que crimes de lesa-humanidade sejam devidamente investigados, julgados e coibidos.
Neide foi presa em 6 de fevereiro de 1975 e encaminhada ao DOI-Codi paulista. No dia 21 daquele mês, foi transferida ao DOI-Codi do Rio de Janeiro, onde foi feita sua identificação, tendo sido fotografada e fichada. De acordo com a Comissão Nacional da Verdade (CNV), ao ser solta, ela procurou familiares que moravam no Rio. Na ocasião, apresentava sinais de tortura por todo o corpo e estava debilitada.
Ela foi internada em um hospital e depois voltou a trabalhar em São Paulo, onde teria sido novamente presa. O último contato mantido com os familiares foi no Natal de 1975. Em 8 de janeiro do ano seguinte, a família recebeu a notícia de que Neide havia morrido.
A versão da morte da militante apresentada pela polícia à época informou que Neide ateou fogo ao próprio corpo, em praça pública, e foi encaminhada por duas pessoas não identificadas ao Hospital do Tatuapé, na capital paulista. O laudo necroscópico foi assinado pelo legista Pérsio José Ribeiro Carneiro, médico que assinou outros laudos de militantes assassinados pelos órgãos da repressão política. Ao contrário de outras vítimas do período, o nome de Neide não aparecia em nenhuma das listas ou dossiês de mortos e desaparecidos da ditadura feitos pelos familiares.
Audir Santos Maciel, acusado de homicídio qualificado, era comandante do Destacamento de Operações e Informações (DOI-Codi) do II Exército e participou da operação que resultou na captura e no assassinato da vítima. Já os médicos Harry Shibata e Pérsio José Ribeiro Carneiro foram denunciados por falsidade ideológica, tendo sido responsáveis por forjar um laudo necroscópico que omitia as verdadeiras circunstâncias da morte.
Ao defender o recebimento da ação penal apresentada pelo Ministério Público Federal em São Paulo, o parecer assinado pelo subprocurador-geral da República Mario Bonsaglia lembrou que em 2010, por ocasião do julgamento do caso referente à Guerrilha do Araguaia, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Brasil a não mais aplicar a Lei de Anistia como forma de impedir a investigação de casos considerados de graves violações de direitos humanos.
O MPF sustentou ainda que, em 2018, no processo referente ao jornalista Vladimir Herzog (preso, torturado e morto durante a ditadura militar), a Corte IDH confirmou a ocorrência de crime contra a humanidade e considerou que instrumentos da legislação brasileira como a Lei de Anistia e a prescrição não poderiam afastar a persecução penal dos delitos.
Manifestação
No parecer, Bonsaglia também pediu a alteração do entendimento firmado pelo STJ de que cabe ao Supremo Tribunal Federal verificar os efeitos das decisões da Corte IDH nos casos de Vladmir Herzog e da Guerrilha do Araguaia, com a harmonização das leis brasileiras e a jurisprudência relativa à Lei da Anistia.
Na ocasião, o STJ entendeu não ser possível afastar normas brasileiras que regem a prescrição com o objetivo de tornar imprescritíveis crimes contra a humanidade. A corte decidiu também que não é possível caracterizar uma conduta praticada no Brasil como crime contra a humanidade sem que exista na legislação brasileira a tipificação de tal crime.
Ao requerer a modificação desse entendimento, Bonsaglia lembrou que o Estado brasileiro, voluntariamente, submeteu-se à jurisdição da Corte IDH ao ratificar, em dezembro de 1998, cláusula da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
“Ao fazer isso, o Estado brasileiro obrigou-se não apenas a respeitar os direitos garantidos na convenção, mas também a assegurar seu livre e pleno exercício, mediante a adoção de medidas afirmativas necessárias e razoáveis para investigar, coibir e responsabilizar aqueles que afrontam os direitos ali assegurados.”
Bonsaglia argumentou também que, nesse cenário, as normas brasileiras ficam sujeitas a uma dupla aferição de sua validade e aplicabilidade: a adequação à Constituição e às convenções internacionais assinadas pelo país. No caso da Lei da Anistia, o parecer do MPF ressaltou que, embora a norma tenha sido julgada válida pelo STF, não foi validada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A avaliação do MPF é que as obrigações estabelecidas para o Brasil pela Corte IDH devem ser executadas principalmente em relação ao dever do Estado de conduzir eficazmente a investigação penal.
“É necessário determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções de que a lei disponha, para os crimes de desaparecimento forçado e outros correlatos ocorridos durante o regime militar, que se revestem de especial gravidade, na medida em que atingem toda a coletividade e exorbitam os limites toleráveis de ofensa a direitos fundamentais, enquadrando-se como crimes de lesa-humanidade, os quais não estão submetidos à prescrição”, finalizou Mario Bonsaglia.
Com informações do MPF