A falta de revelação de um fato, por si só, não caracteriza má-fé do árbitro ou o comprometimento de sua imparcialidade e independência.
Esse foi o entendimento da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) ao manter sentença arbitral que condenou o médico Raphael Brandão a pagar R$ 4,2 milhões para a Esho, empresa do UnitedHealth Group – controlador do plano de saúde Amil.
Nos bastidores da arbitragem, a decisão foi recebida com festa por ser considerada um ‘cheque em branco’ para os árbitros que poderão omitir fatos e não deverão ter suas sentenças anuladas, pelo menos no referido colegiado da Corte paulista.
No entanto, fontes ouvidas pela JuriNews revelam que o entendimento do TJ-SP está sendo usado para reforçar a importância da aprovação do Projeto de Lei nº 3.293/2021,
de autoria da deputada federal Margarete Coelho (PP/PI) e relatoria da deputada federal Bia Kicis (PSL/DF), que almeja regular as distorções existentes atualmente na arbitragem no Brasil.
E isso é motivo de apreensão entre os advogados que atuam em procedimentos arbitrais. De acordo com o projeto de lei, os árbitros ficarão obrigados a divulgar qualquer fato que denote “dúvida mínima” sobre sua imparcialidade e independência, em vez de “dúvida justificada”, como consta na lei atualmente.
Após forte lobby das entidades da arbitragem que consideram o projeto de lei prejudicial para a sobrevivência da arbitragem no país, a proposta – que chegou a tramitar em caráter de urgência e estava prestes a ser aprovada – segue parada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.
MÉDICO X AMIL
No caso em questão que teve a sentença arbitral mantida pelo TJ-SP, a principal discussão diz respeito ao dever de revelação.
Os desembargadores do colegiado analisaram se houve, nesse caso, violação ao “dever de revelar” do árbitro – previsto no artigo 14 da Lei da Arbitragem.
O médico Raphael Brandão entrou com uma ação para tentar anular a arbitragem alegando falta de imparcialidade por parte de um dos julgadores, o árbitro André de Luizi Correia.
Brandão comprova nos autos que o árbitro dividiu escritório por cerca de um ano e meio com advogados que representam a Esho e que essa informação não foi revelada.
Correia ainda deveria ter revelado, segundo Brandão, que atua como advogado de uma sociedade que depende financeiramente da única sócia da Esho, a empresa Kora. E essa relação apenas teria sido conhecida no curso do processo.
Mesmo assim, o entendimento da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de do TJ-SP, por 4 votos a 1, foi de desconsiderar as principais provas da relação do árbitro com os advogados da empresa controlada pela Amil.
“As suposições levantadas são
insuficientes para sequer indicar eventual relação entre a Esho e o escritório de advocacia do qual o coárbitro é sócio e, mais ainda, do eventual interesse de André de Luizi Correia no resultado da arbitragem”, disse o relator, desembargador Jorge Tosta.
“As razões recursais não convencem acerca da alegada violação do dever de revelação por parte do árbitro André Correia, a ponto de afetar a sua imparcialidade ou independência”, pontuou o desembargador Tosta, destacando ainda que “se a partes optaram pela solução arbitral, devem assumir os riscos de eventual error in judicando, não se podendo utilizar o Judiciário como se instância recursal fosse”, escreveu em seu voto.
VIOLAÇÃO AO DEVER DE REVELAÇÃO
Em voto divergente, o desembargador Ricardo Negrão considera que o dever de revelação é o mais importante instrumento encontrado pelo legislador capaz de garantir a equidistância do árbitro. “É princípio garantidor da arbitragem”, observou.
No seu entendimento diverso dos demais julgadores do colegiado, Negrão concluiu que o árbitro deixou de informar fato relevante. “A violação do dever de revelação é em si mesmo causa de invalidade de todo o processo”, apontou.
O desembargador também citou decisão do STJ (AREsp 1943894), de relatoria do ministro Raul Araújo, sobre o dever de revelação. “Desinfluente qualquer argumento tendente a qualificar a omissão como mero deslize, pequena imprudência ou inexistência de prejuízo à imparcialidade ou à independência. Recentemente, assim entendeu o STJ”.
Ao detalhar seu voto, ele destacou três motivos para reconhecer a nulidade da sentença arbitral.
“Parece-nos que ausência dos dados que deveriam constar da resposta ao questionário eram relevantes e aos autores sequer se permitiu, na origem, perquirir sobre o peso que tais revelações trariam à concordância dos autores à aceitação do árbitro”, explicou Negrão.
“Um segundo motivo é que a ausência de maior aprofundamento sobre as questões processuais arguidas impediu aos autores trazer ao conhecimento nas Instâncias de Origem, o envolvimento profissional do árbitro André com escritório de Advocacia de patrono da ESHO (fl. 5.797-5.804, itens 1 a 10 das razões de recurso), o que demonstra a relevância da revelação omitida”.
E por fim, o desembargador concluiu ao dar provimento ao recurso do médico contra a Amil: “O terceiro motivo de divergência refere-se à forma com que os árbitros analisaram as cláusulas contratuais. Os árbitros, como bem esclarece a inicial e o parecer juntado apresentaram conclusão contra legem às cláusulas discutidas”.
PROCESSO Nº 1097621-39.2021.8.26.0100