Fundamentada em recomendações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e da Organização das Nações Unidas (ONU) para eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, a juíza Sabrina Rampazzo de Oliveira, da comarca de Jataí (GO), determinou o arquivamento de um processo de denunciação caluniosa contra uma mulher vítima de violência doméstica.
A magistrada, que é titular do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Jataí e integrante da Coordenadoria Estadual da Mulher, acolheu manifestação pelo arquivamento do Ministério Público do Estado de Goiás.
Conforme os autos, Karoline Quirina Ponciano denunciou que o companheiro a agrediu fisicamente e descumpriu as medidas protetivas, terminando o relacionamento. Após reconciliação do casal, a vítima fez uma retratação em relação aos crimes que havia noticiado e, como consequência disso, passou à condição de indiciada na ação.
A magistrada explica que, via de regra, a retratação da mulher no âmbitos dos crimes abarcados pela Lei Maria da Penha não pode ser taxada como conduta criminosa, “sobretudo porque, em razão da fragilidade gerada pelo próprio agressor, não se pode punir duas vezes quem não consegue oferecer resistência e suportar o processo, salientando que a pena do delito de denunciação caluniosa é muito maior do que a que seria imposta ao agressor nos casos de lesão corporal e descumprimento de medida protetiva.”
Em sua argumentação, Sabrina Rampazzo destaca o ciclo da violência no qual as vítimas estão inseridas, identificado pela psicóloga norte-americana Lenore Walker em três fases: aumento da tensão; ato de violência; arrependimento e comportamento carinhoso, conhecida como lua de mel. “Com efeito, a retratação das vítimas de violência doméstica ocorre na última fase do clico da violência (lua de mel)”.
A titular do Juizado de Violência Doméstica destaca que os elementos dos autos “demonstram que Karoline agiu movida pelo desejo de não prejudicar o companheiro, justamente por ter se reconciliado com ele, de modo que o dolo direto, indispensável para a comprovação da denunciação caluniosa, ao que tudo indica, encontra-se ausente, não sendo possível configurar a justa causa para a ação penal”.
Portanto, conclui a magistrada, “inexistem indícios de que as declarações da vítima que deram ensejo à instauração do inquérito policial tenham sido deliberadamente mentirosas, até porque sequer realizado exame de corpo de delito para apurar a existência das lesões por ela sustentadas.”
Recomendações
Duas reconhecidas recomendações foram citadas pela juíza Sabrina Rampazzo de Oliveira para apoiar sua decisão: Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, instituído pela Recomendação nº 128/22 do CNJ, e alinhado ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU e a Recomendação Geral nº 33 da CEDAW (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres de 1979).
O protocolo do CNJ estabelece que as normas jurídicas sejam interpretadas com as lentes de gênero, ressaltando que o julgamento imparcial perpassa por uma postura ativa de desconstrução e superação dos vieses e uma busca por decisões que levem em conta as diferenças e desigualdades históricas, o que é fundamental para eliminar todas as formas de discriminação contra a mulher.
“É preciso reconhecer que complexidade e a dinâmica da violência doméstica e familiar contra as mulheres, o fenômeno da violência doméstica é multifatorial e complexo e para isso não só o Direito se faz necessário, mas o estudo de outras disciplinas, tais como sociologia, psicologia, neurociência, a fim de reconhecer, por exemplo, que a violência doméstica é cíclica, que há resistência das mulheres em denunciar, há dificuldade em romper as relações violentas e uma tendência à reconciliação”, reflete a magistrada.
Já a recomendação da CEDAW estipula que “os estereótipos distorcem as percepções e dão lugar a decisões baseadas em convicções e pré-concebidas ao invés de fatos. O recurso a estereótipos afeta a credibilidade das declarações, argumentos e depoimentos prestados por mulheres, enquanto partes e testemunhas.”
Com informações do TJ-GO