O Ministério Público Federal (MPF) manifestou-se favoravelmente à suspensão cautelar de uma lei que facilita a privatização de terras públicas no estado de São Paulo, em vigor desde o ano passado. O parecer do procurador-geral da República, Augusto Aras, foi apresentado no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.326, que o Partido dos Trabalhadores (PT) ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) em dezembro do ano passado. A ação questiona a Lei 17.557/2022 de São Paulo, que instituiu o Programa Estadual de Regularização de Terras, e o Decreto 67.151, que a regulamentou.
Uma das razões para a suspensão da lei até que o STF decida definitivamente o caso, afirma o MPF, é o risco iminente de danos ambientais irreversíveis, uma vez que a norma não traz salvaguardas à fauna e à flora das áreas a serem regularizadas. O texto também abre caminho para a convalidação de imóveis adquiridos por meio de práticas ilegítimas, como a grilagem.
Na manifestação, o PGR apresenta uma ressalva no sentido de que seja assegurado o direito de superfície. Previsto no Estatuto das Cidades (Lei 10.257/2001), o instrumento permite que o proprietário de um terreno urbano conceda a outra pessoa o direito de utilizar o solo, subsolo ou espaço do terreno, conforme estabelecido em contrato. Nesses casos, de acordo com a manifestação do PGR, a suspensão da norma não deve afetar o direito dos chamados superficiários.
O procurador-geral elenca diversos pontos em que, a princípio, a lei paulista contraria a Constituição, a começar por seu próprio objeto. Segundo a Carta de 1988, cabe privativamente à União legislar sobre o direito agrário, restando aos estados e ao DF criar apenas normas relativas a questões específicas, desde que autorizados por lei complementar.
O Ministério Público destaca que, ao lançar novas regras sobre a titulação de terras, o Estado de São Paulo parece ter avançado indevidamente sobre a competência do Congresso Nacional e do Executivo federal para tratar do assunto.
Preceitos fundamentais que regulam a destinação do patrimônio público também foram, em tese, desrepeitados na edição da Lei 17.557/2022. Ao facilitar a regularização fundiária para particulares que já ocupam terras pertencentes ao Estado, o texto tem o potencial de ferir os princípios da dignidade humana, da justiça social e da função social da propriedade, inscritos na Constituição.
A desconformidade entre a norma paulista e essas diretrizes pode significar afronta ao artigo 188 da Lei Maior, que resguarda a necessidade de se compatibilizar a destinação de terras públicas e devolutas com a política agrícola e o plano nacional de reforma agrária.
O MPF contesta ainda a dispensa indevida de licitação dessas terras, implícita na Lei 17.557/2022, e alerta para as cautelas obrigatórias que o texto deixou de observar na definição das regras de regularização fundiária. Enquanto a legislação federal determina a identificação precisa das glebas a serem titularizadas, a norma em vigor em São Paulo traz termos e expressões amplos e vagos ao indicar as áreas passíveis de privatização.
O artigo 2º, por exemplo, permite que sejam titularizadas terras cujas circunstâncias, histórico dominial e localização indiquem a “possibilidade de a área de terra ser considerada devoluta”. Já o artigo 3º prevê a realização de acordos extrajudiciais para a regularização de terras “presumivelmente devolutas”, mediante o mero reconhecimento prévio, declarado pelo próprio adquirente, de que se trata de um imóvel público.
“O Estado não pode privatizar terras que não foram rigorosamente delimitadas por meio da ação própria, que é a ação discriminatória, sob pena de, inclusive, alienar glebas que já possuem títulos de domínio, criando duplicidade de títulos”, frisa Aras. O PGR salienta que “a alienação e titulação de bens públicos parte do pressuposto de que esses bens sejam certos e determinados”.
Íntegra da manifestação na 7.326
Com informações do MPF