Depois de 21 anos, o segundo grau da Justiça Federal está em expansão. No dia 20 de outubro de 2021, após intensa e bem-sucedida articulação do Superior Tribunal de Justiça com o Congresso Nacional, foi sancionada pelo então presidente da República, Jair Bolsonaro, a Lei 14.226, que criou o Tribunal Regional Federal da 6ª Regiã (TRF-6), com sede em Belo Horizonte e 18 desembargadores atendendo Minas Gerais. No mesmo impulso, em 1º de dezembro de 2021, houve a ampliação dos demais TRFs ao ser sancionada a Lei 14.253.
Com as mudanças, a configuração da Justiça Federal ficou assim: em vez de cinco regiões jurisdicionais federais, agora são seis; e os desembargadores, que eram 139, passarão a ser 214 – um aumento de 75 julgadores de segunda instância. A demanda e o acervo judiciais continuam os mesmos; a distribuição territorial e a carga de trabalho por julgador melhoraram. O orçamento e as despesas, ao menos na versão oficial, também permanecem iguais, só que otimizados.
O desmembramento do Tribunal Federal de Recursos, em 1988, em cinco tribunais regionais, com sedes descentralizadas, foi um grande acerto dos constituintes. De errado só os critérios de divisão das áreas de jurisdição. O maior erro foi perpetrado na definição territorial da 1ª Região, com sede em Brasília e jurisdição sobre 13 estados espalhados pelo Norte, Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste. Em pouco tempo, o TRF-1 foi soterrado por uma avalanche de milhares de processos e nunca alcançou efetividade.
Outros planos de redesenho da Justiça Federal chegaram a ser pensados. O que tinha ido mais longe foi o que resultou na Emenda Constitucional 73/2013, que criou quatro novas regiões da Justiça Federal. A emenda constitucional foi aprovada pelo Congresso e sancionada pela presidente Dilma Rousseff, mas por obra do então presidente do STF, ministro Joaquim Barbosa, teve sua aplicação suspensa e jaz esquecida numa suprema gaveta.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) justificou o TRF-6 e a expansão dos demais com o aumento de casos em estoque para julgamento na segunda instância, provocado pela criação de juizados especiais federais e de varas federais no processo de interiorização da Justiça Federal de primeiro grau, sem, no entanto, acompanhamento no segundo grau.
Outro fator levado em conta foi a alta taxa de recorribilidade das decisões na Justiça Federal, que, em 2021, superou a casa dos 15%. Na Justiça Estadual, por exemplo, apenas 5% dos processos julgados pela primeira instância chegam aos Tribunais de Justiça na forma de recursos. O grande responsável por esse fenômeno é a União, cliente preferencial da Justiça Federal, para quem recorrer é lei. O INSS e a Caixa Econômica Federal são, dentre os entes da União, os campeões da litigância, que, mesmo não sendo de má-fé, em muitos casos é injustificada.
De acordo com o relatório Justiça em Números 2022, do Conselho Nacional de Justiça, os desembargadores da Justiça Federal, comparando com os da Justiça Estadual, são os que, proporcionalmente, têm a maior carga de trabalho, com média anual de 14 mil casos/julgador (ano-base 2021). No TRF-1, essa média é ainda mais alta – 22 mil. Com a criação do TRF-6 e com o aumento de desembargadores de 27 para 43, o número de processos à espera de julgamento de cada desembargador do TRF-1 deve cair para cerca de nove mil.
Taís Schilling, desembargadora da 4ª Região, considera acertada a criação de um novo TRF em Minas Gerais. “Essa Seção Judiciária respondia por uma quantidade desproporcional de feitos na 1ª Região”, diz. Com efeito, tinham origem em Minas Gerais quase 35% dos recursos do TRF-1.
Demanda da Justiça Federal aumentou 40% de 2020 para 2021
Para conseguir a aprovação no Parlamento, o STJ insistiu que a criação de mais um regional não geraria crescimento de despesas, pois o orçamento do TRF-6 seria desmembrado do orçamento do TRF-1 e o aumento do número de magistrados se daria pela conversão de cargos vagos para juízes federais.
Mas pode ser que o que se disse não foi exatamente o que se fez, como reconhece a presidente do novo tribunal, Mônica Sifuentes: “O planejamento era iniciar o tribunal sem custos, e eu digo ‘sem muitos custos’, porque é claro que sempre há custos, até para ter água, luz etc.”.
Desde a Emenda Constitucional 95/2016, que estipulou um “teto de gastos” pela União, apenas corrigido pela inflação do ano anterior, a Justiça Federal não consegue, sequer, repor o quadro de servidores na velocidade que deixam o serviço ativo. Ao longo desses seis anos, algumas regiões estão com déficit de centenas de servidores, como é o caso da 3ª Região, com falta de cerca de 500 servidores. “Nós cobrimos um santo e o outro acaba descoberto”, lamenta a presidente do TRF-3, desembargadora Marisa Santos.
Enquanto a 5ª Região teve um acréscimo de 392 servidores, as outras quatro sofreram uma redução de 762. Quantos postos de trabalho foram eliminados em consequência de recursos tecnológicos que foram adotados e que, possivelmente, não resultaram em perda de produtividade é um dado ainda desconhecido.
O ponto positivo é que aumentou o número de juízes em todas as regiões desde 2016, o último ano que não está coberto pelo teto de gastos. No total, foram 110 juízes a mais. No entanto, segundo o observatório da Justiça Federal, somente 80% dos cargos de juízes existentes estão preenchidos, havendo um déficit de cerca de 500 juízes.
Na opinião do especialista Fernando Scaff, advogado e professor de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP, tal como foi desenhado, o teto de gastos foi um erro: “O debate sobre as finanças públicas brasileiras passou a ser dominado pelo ‘teto de gastos’. Em tese, tudo é feito para respeitar o teto, e, invariavelmente, acha-se um jeito de criar goteiras no teto – a tal ponto que ele cumpre hoje muito mais uma função mítica ou simbólica do que a efetiva função de conter os gastos”.
Segundo levantamento do professor, no governo Bolsonaro foram costuradas sete emendas constitucionais para romper os gastos, além da PEC proposta pelo governo de transição para garantir o pagamento do Bolsa Família. Ele afirma que o teto de gastos “é um freio inadequado, pois impede que despesas sejam realizadas, mesmo ocorrendo (1) aumento da renda ou (2) quando há necessidade de aumentar gastos básicos, como com saúde”. Desse modo, ele conclui, seus reflexos negativos acabaram por engessar a Justiça Federal como um todo, seja no âmbito das despesas obrigatórias (remuneração), seja no âmbito da reposição de servidores.
O Tribunal Regional Federal da 1ª Região passa por uma grande reformulação após a transformação da Seção Judiciária de Minas Gerais em TRF-6. A corte terá 16 desembargadores a mais. No total serão 13 turmas com três desembargadores cada, com exceção da 9ª Turma, que terá quatro. As câmaras regionalizadas de Minas Gerais foram extintas. As seções também foram ampliadas: a 1ª, a 2ª e a 4ª Seções terão três turmas e a 3ª Seção ficará com quatro.
No TRF da 2ª Região, com jurisdição sobre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, a ampliação da corte ocorreu em fevereiro de 2022, após o Plenário referendar a Resolução 3/2022, que definiu a transformação de nove cargos de juiz substituto para desembargador. A corte passou de 27 para 35 integrantes. Houve o remanejamento de funções comissionadas, que possibilitaram a instalação dos novos gabinetes. Com a alteração, cada turma passou a ser composta de quatro membros. Antes, eram três em cada.
Para o presidente em exercício, desembargador Guilherme Calmon, em quase um ano com a nova estrutura já foi possível verificar uma melhora nas atividades. “Cada uma das turmas passou a ter um membro a mais. Isso permitiu uma diluição do acervo do tribunal e teve impacto na própria realização das sessões”, disse. Com um desembargador a mais e um juiz sempre convocado, as turmas conseguem aplicar o parágrafo 1º do artigo 942 do Código de Processo Civil, o que não vinha acontecendo antes. O artigo 942 prevê que, em caso de divergência, o julgamento terá prosseguimento com a presença de adicional de outros julgadores.
O TRF-3, com jurisdição em São Paulo e Mato Grosso do Sul, está em vias de conseguir prover quatro das 12 novas vagas autorizadas pela lei. Elas irão para a 1ª e a 4ª Seções. Assim, os 11 colegiados passarão a contar com quatro membros. O tribunal ainda não sabe, porém, como disporá as outras oito vagas. O certo é que haverá redistribuição de funcionários aos novos gabinetes, com equipes menores.
O TRF-4, com jurisdição nos estados do Sul, já promoveu a posse dos 12 novos desembargadores, dois deles representantes do quinto constitucional da advocacia e do Ministério Público Federal. Os demais já atuavam no tribunal como juízes convocados.
Duas novas turmas foram instaladas – uma em Curitiba, outra em Florianópolis –, somando-se a outras duas turmas que já funcionavam nas duas capitais. Os dois novos colegiados assumiram jurisdição sobre os recursos nas áreas administrativa, civil e comercial. Até setembro de 2024, a 11ª Turma, com sede em Florianópolis, ainda julgará exclusivamente os recursos na área previdenciária e de assistência social, para diminuir pela metade o acervo de 70 mil processos. A outra metade foi redistribuída para as demais turmas que cuidam da matéria.
“Tem-se avançado no tema com a criação de turmas regionais, cuja previsão constitucional permitiu que o TRF-4 instalasse em definitivo duas turmas no Paraná e outras duas em Santa Catarina”, comenta o desembargador Gebran Neto.
Para o desembargador Osni Cardoso, “as principais dificuldades residem no reduzido número de servidores nos gabinetes, considerado o crescente aumento na distribuição, a quantidade expressiva de aposentadorias e a dificuldade de recrutamento de novos servidores, sobretudo por questões orçamentárias”.
O TRF-5 passou a contar com nove novos desembargadores em setembro de 2022. Para acomodar os magistrados empossados, foram criadas as 5ª, 6ª e 7ª Turmas. Não houve redistribuição do acervo dos antigos gabinetes. Também foram instituídas três seções, que assumiram atribuições retiradas do Tribunal Pleno.
O Plenário da corte e o Conselho de Administração tiveram o número de cadeiras ampliado em suas composições por conta da mudança. Também no TRF-5 foi indispensável uma reestruturação no quadro de cargos e funções de confiança, inclusive envolvendo o primeiro grau de jurisdição. Reformas têm sido feitas na sede para acomodar os novos desembargadores.
O TRF-6 foi instalado em 19 de agosto de 2022. Em 8 de outubro, já aconteciam as primeiras sessões de julgamento da corte. A presidente, Mônica Sifuentes, comemora a rapidez com que o novo órgão foi colocado em funcionamento. Contudo, em entrevista ao Anuário, relatou inúmeros desafios. “Subiram servidores do primeiro grau para o tribunal. O resultado foi uma carência na primeira instância. Criou-se uma situação difícil de administrar.”
Ocorreram, também, problemas na migração de processos do TRF-1 para o TRF-6. O maior desafio da nova corte, contudo, é aproveitar a oportunidade de estar criando tudo do zero para desenvolver um modelo de serviço que dê exemplo para a Justiça Federal.
O acervo da Justiça Federal está na casa dos 11 milhões de processos. Na segunda instância há um milhão e na primeira, quase dez. Os TRFs, nos últimos quatro anos, têm tido saldo positivo e vêm conseguindo julgar acima da distribuição. Em 2021, o saldo foi de 110 mil processos. O TRF-3 (São Paulo e Mato Grosso do Sul) foi a corte que mais julgou: foram 205 mil decisões proferidas, uma diferença de 80 mil casos frente à distribuição que recebeu.
O primeiro grau vai no sentido contrário. Nos últimos quatro anos, os juízes que fazem o chão de fábrica da Justiça não conseguiram julgar acima da quantidade de casos recebidos. A demanda pelo Judiciário foi fortemente afetada pela crise sanitária provocada pela epidemia de covid-19. A queda de 21% no volume de processos distribuídos às varas e aos juizados federais em 2020, o ano perdido para o coronavírus, foi amplamente compensada pela explosão de novos processos em 2021, quando se registrou um crescimento de 40% na demanda.
Esse aumento decorre do represamento de casos na epidemia, por conta de interrupções nos serviços do INSS e nas audiências nos juizados federais, além da alteração da regra da competência delegada, provocando maior absorção da demanda previdenciária pela Justiça Federal.
Dos dez temas que mais são julgados na Justiça Federal (primeiro e segundo graus), sete tratam da área previdenciária. O INSS é o maior litigante brasileiro, tanto na Justiça Federal como na Justiça Estadual. As diversas espécies de aposentadoria (por tempo de contribuição, por idade, urbana, rural, especial etc.) e os pedidos de auxílio-doença são os que, disparados, lideram o ranking.
O auxílio emergencial, também um subproduto da covid-19, teve bastante repercussão na Justiça em 2021. Muitos casos acabaram resolvidos em conciliação e, em 2022, a onda recuou. Anuidades de conselhos profissionais, execuções fiscais e cobranças de PIS e Cofins são uma constante na Justiça Federal.
Desembargadores relataram ao Anuário terem sentido aumento nos pedidos do auxílio-doença. “Um rescaldo da pandemia é o aumento de benefícios por incapacidade. Estamos em uma segunda epidemia, que é a epidemia da depressão e da síndrome do pânico. Há uma pesquisa do INSS dando conta de que houve um aumento de 25% nos pedidos de benefícios de incapacidade em razão de depressão e síndrome do pânico. E isso está indo para o Judiciário”, aponta a presidente do TRF-3, Marisa Santos, que também afirma haver certo preconceito em reconhecer essas doenças como incapacitantes.
O desembargador Paulo Brum Vaz, do TRF da 4ª Região, enxerga uma tendência de aumento dessas ações por uma série de fatores econômicos e sociais. Segundo ele, que se dedicou a estudar o tema com profundidade, o adoecimento da população e a existência de duas medicinas no país – “uma dos ricos, outra dos pobres” – provoca uma corrida ao INSS para postular benefícios por incapacidade.
Ele avalia que as doenças incapacitantes, como a depressão e o adoecimento profissional, resultam de “competição, disputas de todo tipo, desigualdades imensas, preconceito, violência física e psicológica”. Em sua opinião, as perícias, do INSS e judiciais, são deficitárias, havendo também resistência em se reconhecer afastamento por conta de depressão. Se melhorassem, ele aposta, reduziriam muito a judicialização dos pedidos.
“Os benefícios que são negados administrativamente pela autarquia acabam desaguando no Judiciário”, comenta o desembargador Sérgio Nascimento, do TRF-3. Levantamento feito pelo site Metrópoles junto ao Dataprev mostrou que o INSS negou 3.311.615 benefícios entre fevereiro e outubro de 2020. O benefício por incapacidade temporária representou 53,4% dos indeferimentos, num total de 1.786.450.
Brum Vaz também cita a Reforma da Previdência (EC 103/2019). “A redução do nível de proteção social estatal, notadamente diante do avanço do ideário neoliberal e das consequentes tendências de reformas limitadoras destes inerentes direitos da seguridade social, está sendo compensada pelo Poder Judiciário”, afirma.
Com o relaxamento das medidas sanitárias, o trabalho remoto compulsório foi sendo deixado de lado ao longo de 2022, dando lugar ao trabalho híbrido (presencial e não presencial). A reabertura dos prédios ocorreu de forma paulatina e foi permitido o trabalho remoto de uma parcela dos servidores em regime de escala, que variou conforme estipulou a presidência de cada tribunal. Em novembro, o Conselho Nacional de Justiça definiu que apenas 30% dos servidores podem trabalhar de casa e deu 60 dias para todos os tribunais se adaptarem.
Com informações da Conjur