A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo expediu recomendação ao WhatsApp para que apenas implemente a funcionalidade Comunidades, no Brasil, a partir de janeiro de 2023. A medida tem como objetivo evitar que a atual política de enfrentamento à desinformação da empresa seja alterada ainda neste ano, em um momento no qual fake news sobre o funcionamento das instituições e a integridade do sistema de votação brasileiro podem colocar em risco a estabilidade democrática do país.
Divulgado como parte de um pacote de novos recursos do aplicativo, o WhatsApp Comunidades permitirá que grupos da plataforma sejam integrados em espaços de interesse comum, chamados “Comunidades”. Com elas, será possível reunir diferentes grupos que tenham relação entre si, como em uma comunidade que congregue grupos de WhatsApp de professores, de pais, de alunos, de funcionários da administração, de comitês de formatura, todos de uma mesma escola, por exemplo.
Sem entrar no mérito das eventuais vantagens que essa funcionalidade pode trazer para o cotidiano dos usuários do WhatsApp, o MPF entende que ela pode vir na contramão de medidas eficientes que a própria plataforma tem adotado, nos últimos anos, para conter a disseminação de fake news.
Entre os motivos de preocupação do órgão, está o fato de que usuários no papel de administradores destas Comunidades poderão, valendo-se de “avisos”, mandar mensagens para todos os milhares de integrantes dos grupos que elas congregarem, de uma só vez. Tal recurso, a depender de como será usado após ser implementado, poderá aumentar a capacidade de as pessoas viralizarem conteúdos por meio do aplicativo.
Criptografia e viralização de desinformação
O MPF lembra que o WhatsApp utiliza criptografia ponta a ponta, algo importante para garantir a privacidade dos usuários em suas conversas. Por outro lado, como a criptografia impede que os responsáveis pela plataforma monitorem e moderem o conteúdo das mensagens que nela são trocadas, a política de contenção de desinformação do WhatsApp teve de recorrer a estratégias diferentes, focando em diminuir o fluxo de conteúdos que circula no aplicativo.
A principal dessas estratégias para desacelerar a divulgação de boatos e notícias falsas, empregada nos últimos anos, foi limitar o número de encaminhamentos que cada usuário pode fazer de uma só vez. Isso foi feito progressivamente a partir de 2018, com importantes resultados, até chegar ao modelo atual, em que mensagens comuns somente podem ser reencaminhadas para até cinco destinatários simultaneamente, e mensagens que já ganharam alguma viralização, marcadas como “encaminhada com frequência”, podem ser reencaminhadas para, no máximo, um destinatário de cada vez. Assim, a desinformação é contida, diminuindo a intensidade do fluxo de mensagens dentro da plataforma.
Os recursos anunciados com o WhatsApp Comunidades, porém, a depender de como forem explorados pelos usuários, podem relativizar essas estratégias de contenção, especialmente porque a própria empresa tem admitido que, nesse pacote, o número máximo de usuários que cada grupo hoje comporta pode aumentar de 256 para 512.
Como aponta a recomendação, quando as Comunidades forem implementadas, seus administradores poderão enviar mensagens a até 2.560 pessoas de uma só vez, o que representará um aumento de dez vezes no limite de envios iniciais de mensagens hoje em vigor na plataforma.
E se o tamanho máximo de cada grupo de fato dobrar, esses envios iniciais crescerão mais ainda, chegando a até 5.120 pessoas de uma só vez. Com isso, haveria um aumento da capacidade de viralização de conteúdo no WhatsApp, que poderia afetar negativamente sua atual política de enfrentamento à desinformação.
Riscos no fim do ano
Em abril, o WhatsApp (que tem posição de destaque no mercado nacional, por ser instalado em 99% dos smartphones brasileiros e ser usado por grande parte da população em seu dia a dia, inclusive como fonte de informação) comprometeu-se publicamente a implementar o Comunidades somente após o eventual segundo turno das eleições.
Contudo, no entendimento do MPF, isso não é suficiente para mitigar os riscos especialmente graves que um aumento de desinformação pode gerar para as instituições e para a população do país nos últimos dois meses do ano.
A recomendação expõe que, impulsionada pela ação de grupos organizados, tem aumentado a desinformação especificamente relacionada ao funcionamento das instituições democráticas do Brasil. Notícias falsas envolvendo o sistema de votação nacional e a confiabilidade do sistema de justiça eleitoral, muitas vezes ligadas a convocações de manifestações violentas contra os poderes da República, têm circulado em grande volume nas plataformas digitais.
Um estudo da Fundação Getúlio Vargas publicado recentemente identificou, por exemplo, que 337.204 publicações com desinformação sobre os processos democráticos brasileiros alcançaram milhões de visualizações entre 2014 e 2020, e expuseram um grande número de pessoas a notícias falsas sobre supostas falhas de segurança das urnas e sobre o alegado envolvimento de autoridades públicas em fraudes sem qualquer comprovação ou base fática.
Para o MPF, esse tipo de fake news, quando disseminado em larga escala no ecossistema da internet, viola o direito à informação dos cidadãos e das cidadãs e mina sua confiança no sistema representativo do país. Além disso, em períodos de instabilidade institucional e de polarização, pode alimentar manifestações violentas que colocam em perigo a própria integridade das instituições nacionais e até mesmo a segurança da população.
A recomendação, nesse ponto, cita evidências de que, no ano passado, fluxos de desinformação sobre o processo democrático dos Estados Unidos contribuíram para a invasão do Capitólio, que resultou na morte de cinco pessoas e é considerada um dos mais graves ataques à democracia daquele país.
Lembra ainda que, no Brasil, o número de licenças de porte de arma aumentou mais de 470% nos últimos anos, algo que pode contribuir para que manifestações violentas, organizadas e infladas com base em notícias falsas sobre as instituições e os processos democráticos do país, levem a resultados imprevisíveis ao final deste segundo semestre.
Adiamento por cautela
No entendimento do MPF, o Comunidades é uma funcionalidade nova e, pelo que foi até agora divulgado, não se sabe ainda como operará em detalhes na prática. Em razão disso, o órgão entende que ela deva, por cautela, ser implementada somente no início do ano que vem, dando tempo para que, até lá, os responsáveis pelo WhatsApp apresentem um relatório detalhado que analise eventuais impactos desses recursos sobre a atual política de contenção à desinformação em vigor na plataforma, com foco em fake news que colocam em risco a integridade de processos democráticos, como o atualmente em curso, e os direitos humanos neles envolvidos.
O MPF ainda lembra que o adiamento recomendado é uma providência razoável, pois não geraria prejuízo relevante nem para a empresa, nem para seus consumidores, já que duraria pouco mais de dois meses e não há quem hoje, no país, faça uso do Comunidades e dependa dele para suas atividades no dia a dia.
Além do adiamento da implementação da funcionalidade Comunidades, o MPF também recomenda que o WhatsApp não adote neste ano, no Brasil, qualquer outra medida que possa enfraquecer suas estratégias vigentes de enfrentamento à desinformação, evitando aumentar, nos próximos meses, o tamanho atual dos grupos da plataforma, de 256 para 512 usuários.
A empresa tem um prazo de 20 dias úteis para informar se acolhe ou não a recomendação. Caso não acolha, o MPF poderá ir à Justiça para fazer valer as providências recomendadas.
Leia a íntegra da recomendação.
Com informações do MPF