Dois anos depois da drástica reformulação da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.492/1992), o Brasil se vê em meio à construção da identidade da ação que visa a proteger a administração pública do gestor desonesto. Esse cenário é relevante porque afeta a forma como juízes e membros do Ministério Público se valem desse instrumento.
Antes da Nova LIA (Lei 14.230/2021), a ação civil pública era o meio mais usado para processar administradores ímprobos, com a justificativa da defesa do erário, da moralidade e da probidade, que se insere nos interesses difusos de toda a coletividade brasileira. A ACP, regulada pela Lei 7.347/1985, tem um rito específico de tramitação.
Em 2021, porém, o Congresso Nacional decidiu acabar com esse uso. A ação de improbidade agora segue o rito comum previsto no Código de Processo Civil.
Apenas se o juiz identificar que o caso é de mera ilegalidade ou irregularidade administrativa — ou seja, afastando o ato de improbidade — é que ele poderá converter a ação em ACP.
Paradoxalmente, a Nova LIA incluiu o artigo 17-D na lei para dizer que a ação de improbidade, instrumento repressivo e de caráter sancionatório, não constitui ação civil. E, ao fazê-lo, mirou algumas consequências processuais que lhe seriam benéficas.
A principal delas é dar interpretação a essas causas conforme os preceitos do Direito Administrativo Sancionador. Essa é a previsão expressa do artigo 1º, parágrafo 4º, da Lei de Improbidade Administrativa.
Com isso, há uma aproximação dos princípios e conceitos usados no Direito Penal, enquanto espécie do gênero de direito punitivo estatal. Isso influi em pontos como a retroatividade da lei mais benéfica, o ônus da prova e a aplicação do in dubio pro socieate, entre outros.
O problema é que há uma certa dificuldade para enquadrar a ação de improbidade no âmbito do Direito Administrativo Sancionador. Basta dizer que não existe a previsão de a administração pública punir seus agentes por atos ímprobos. O Poder Judiciário é necessário.
Assim, a ação de improbidade redesenhada pelo Congresso Nacional em 2021 surge como algo sem paralelos no processo brasileiro. Juízes, membros do MP, especialistas e doutrinadores ainda se dividem sobre como interpretar e abordar essas transformações.
Até o momento, a posição mais aceita é a de que estamos falando de uma ação civil, já que o ato de improbidade administrativa tem natureza civil. Ela apareceu no voto do ministro Alexandre de Moraes que levou o Supremo Tribunal Federal a limitar a retroatividade da Nova LIA, no Tema 1.199 da repercussão geral.
No entanto, nem no STF isso é unanimidade.
O ministro André Mendonça reconheceu em seu voto a intersecção entre Direito Administrativo Sancionador e Direito Penal. Já o ministro Kassio Nunes Marques deu um passo além ao dizer que a improbidade está mais próxima de um crime do que de um ilícito civil. Para ele, seria adequado estender o quanto possível as garantias próprias dos Direitos Penal e Processual Penal.
Na contramão, a ministra Rosa Weber, atualmente aposentada, entendeu que seria inviável justapor Direito Administrativo Sancionador e Direito Penal de forma automática e linear. E o ministro Edson Fachin manteve a compreensão anterior à Nova LIA sobre o caráter civil da ação de improbidade.
Para Alexandre, o objetivo do legislador foi realmente buscar a retroação total da lei, para afetar todas as ações e condenações anteriores. Ele classificou como “confusão legislativa” a previsão legal de aplicação das normas do CPC com a indicação de que não se trata de ação civil.
“A retroatividade iria gerar uma impunidade gigantesca”, afirmou o ministro na palestra de abertura do Congresso Brasileiro de Improbidade Administrativa, organizado pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) na sede do Conselho da Justiça Federal, nos dias 23 e 24 de novembro.
O promotor de Justiça Emerson Garcia, do MP do Rio de Janeiro, destacou que a previsão dos preceitos do Direito Administrativo Sancionador feita pela lei buscou afastar as consequências do processo civil. “A primeira delas é a retroatividade. É visível que a lei foi feita para retroagir.”
Na visão do advogado Marçal Justen Filho, a ação de improbidade realmente não tem natureza penal, mas isso não significa que ela seja civil. Em sua análise, o legislador reconheceu a natureza punitiva desse tipo de processo e, com isso, levou a lei a criar uma ação típica.
“Como é possível assemelhar a figura da improbidade administrativa ao Direito Administrativo Sancionador quando, para a punição, é indispensável a intervenção do Judiciário? Isso evidencia uma figura que não tem paralelo com nada que se tinha anteriormente.”
Segundo o procurador da República Antônio do Passo Cabral, a ação de improbidade não deve ser vista como algo isolado. Em vez disso, precisa ser interpretada em conjunto com outras normas que compõem o microssistema de tutela da probidade.
Entre elas, há a Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), a Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013), a Lei de Licitações (Lei 14.133/2021) e as leis eleitorais que tratam do tema. “É preciso que façamos uma reflexão sobre aproximação das leis que tutelam a probidade no exercício de funções públicas.”
Já o advogado Fábio Medina Osório busca solução no Direito Internacional. Ele afirma que a jurisprudência da Corte Intermericana de Direitos Humanos e do Tribunal Europeu de Direito Humanos prevê a aplicabilidade dos princípios penais no Direito Sancionador. Isso levaria à retroação total da Nova LIA.
“O argumento consequencialista de que isso acarretaria impunidade ou a nulidade de processos não convence. É um tema de outra ordem, que não diz respeito ao mundo jurídico. Esses argumentos não podem convencer quem se debruça sobre garantias desse porte.”
CONSEQUÊNCIAS
Fato é que as consequências desse debate já podem ser sentidas. A subprocuradora da República Samantha Chantal defende que a Nova LIA aproximou demais a ação de improbidade do processo penal, mas apenas naquilo que beneficia a defesa, e não em outros pontos importantes.
Um deles, segundo ela, está no artigo 17, parágrafo 10-F, que impede o juiz de modificar o fato principal e a capitulação legal apresentados pelo autor na petição inicial. Se no processo penal a emendatio libelli (mudança da definição jurídica do fato) e a mutatio libelli (mudança dos fatos narrados) são permitidas pelo código, na seara da improbidade estão vedadas.
“Não se pode perder de vista que a punição por improbidade se aplica com as cautelas e possibilidades de um processo judicial. Não se trata de sanção disciplinar aplicada pelo poder público, em que a aproximação do processo penal em benefício da defesa se justifica pela diferença de status jurídico entre o administrado e a administração.”
O juiz auxiliar do Superior Tribunal de Justiça Fernando Gajardoni trouxe outro exemplo prático: o uso da ação de improbidade para pedir indenização por dano moral coletivo, uma possibilidade que agora parece vedada. O artigo 12 da LIA restringe o ressarcimento ao dano material.
Em sua análise, caso seja entendido que a ação de improbidade se aproxima do processo penal, a condenação a indenizar pelo dano moral coletivo seria possível porque até o Código de Processo Penal traz essa previsão, no seu artigo 387.
E, se o entendimento for de que se trata de ação civil, então o CPC autoriza a fazer pedidos cumulados que não precisam estar circunscritos à improbidade administrativa.
“Alguns vão dizer que a lei não autoriza. O membro do Ministério Público vai propor uma ação de improbidade e outra ação civil pública para pedir os danos morais. Se não houver problema de competência, elas serão reunidas por conexão. O fato é o mesmo. O mesmo juiz vai julgar. Não faz sentido não permitir”, explicou Gajardoni.
Com informações da Conjur