A América Latina tem despontado no ranking das regiões mais violentas para as mulheres, notadamente no que diz respeito aos índices de feminicídio e violência doméstica, conforme dados da ONU Mulheres. A população carcerária feminina desses países também é a que mais cresce no mundo. Segundo o Infopen 2018, o Brasil é o quarto país do mundo com maior número de mulheres presas (cerca de 42 mil em regime provisório ou condenadas, incluídas meninas em cumprimento de medidas socioeducativas).
Para enfrentar essa realidade e atender a uma recomendação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Brasil tem se posicionado a favor da adoção de um protocolo latino-americano de julgamentos com perspectiva de gênero.
A ideia é instituir um guia para a magistratura com foco na eliminação do tratamento desigual ou discriminatório e no aprimoramento das respostas judiciais às agressões contra as mulheres, de modo a evitar que a violência de que são vítimas no âmbito privado ou público seja seguida de uma violência institucional.
Esse foi o objetivo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ao lançar o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, cuja adoção vem sendo recomendada no Brasil desde fevereiro de 2022.
Cientes de que as influências do patriarcado, do machismo, do sexismo, do racismo e da homofobia são transversais a todas as áreas do direito, produzindo efeitos na sua interpretação e aplicação, um grupo de trabalho instituído pelo CNJ elaborou esse documento para incentivar a formação de uma cultura jurídica emancipatória e de reconhecimento de direitos de todas as mulheres.
RECONHECER DESIGUALDADES PARA RECONHECER DIREITOS
O protocolo considera que o amadurecimento institucional do Poder Judiciário brasileiro – que tem acompanhado tendências internacionais, principalmente de organismos e cortes de direitos humanos de âmbito global e regional – motivou o reconhecimento da influência que as desigualdades sociais, culturais e políticas a que as mulheres estão submetidas historicamente exercem na produção e na aplicação do direito.
Segundo a procuradora do Ministério Público de Goiás Ivana Farina Navarrete Pena, ex-conselheira do CNJ e coordenadora do grupo de trabalho que elaborou o protocolo, o principal objetivo do documento é guiar a atuação dos magistrados para que não se reproduzam preconceitos e estereótipos, buscando, assim, uma igualdade substantiva.
“O julgamento com perspectiva de gênero se constitui em um rompimento com as culturas de discriminação e preconceito arraigadas na sociedade brasileira”, afirmou.
Para Salise Sanchotene, desembargadora do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) e conselheira do CNJ, o julgamento com perspectiva de gênero é uma metodologia de aplicação do direito que reconhece a influência das desigualdades no universo jurídico e identifica a necessidade de se criar uma cultura emancipatória de direitos para todas as mulheres e meninas.
A desembargadora lembra que a Constituição Federal de 1988 define a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental e estabelece a igualdade entre homens e mulheres. “O Brasil possui um conjunto de leis protetivas do direito das mulheres, tais como a Lei Maria da Penha, a Lei de Importunação Sexual e aquela que tipifica o assédio. Apesar disso, esse é um país marcado por profundas desigualdades, especialmente desigualdades de gênero”, declarou.
META DA EQUIDADE SUBSTANCIAL
Para a presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministra Maria Thereza de Assis Moura, seguir a Recomendação 128/2022 do CNJ, sobre a adoção do aspecto de gênero como metodologia de julgamento, é fundamental para analisar a regra da imparcialidade, até que seja possível atingir a meta de equidade substancial, à luz das lentes de gênero.
“Embora o protocolo seja recente, decisões já vinham sendo proferidas pelos magistrados com essa mesma metodologia. Não podemos deixar de ter esse olhar para as pessoas que são mais vulneráveis, e para isso é preciso que nós, magistrados e magistradas, sejamos treinados. Não adianta ter todo esse arcabouço sem divulgá-lo para poder ser aplicado. Nós temos os meios para atender melhor essa questão, contanto que o juiz tenha como aplicá-los”, continuou a presidente do STJ.
Segundo a ministra, reconhecer a necessidade de o Poder Judiciário promover o enfrentamento das desigualdades, com a observância da perspectiva de gênero, e fomentar ações que promovam o papel da mulher no sistema de Justiça é fundamental para o desenvolvimento das balizas a respeito do julgamento com perspectiva de gênero no Brasil.
Integrante da Terceira Seção e da Sexta Turma do STJ, o ministro Rogerio Schietti Cruz ressalta ser de extrema importância que magistrados e magistradas tenham uma compreensão crítica e estejam atentos à influência do patriarcado e do racismo estrutural nas instituições e nas decisões judiciais.
Segundo ele, tomar consciência da existência de estereótipos, identificá-los em casos concretos, refletir sobre os prejuízos potencialmente causados e incorporar essas considerações na atuação jurisdicional pode reduzir a possibilidade de se tomar uma decisão que favoreça a desigualdade e a discriminação.
No entender do ministro Schietti, as diretrizes que estabelecem maneiras de investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero contribuem para essa “mudança de olhar” do profissional sobre o crime, suas circunstâncias, a vítima e o responsável pela morte ou agressão.