Na legislação brasileira atual, uma mulher pode ser condenada a pena de prisão de até 3 anos (Art. 124) por fazer um aborto, e quem ajuda na realização do aborto – profissional de saúde, amiga ou familiar – pode ser condenada a pena de até 4 anos (art. 126 do Código Penal). Em setembro de 2023 a discussão voltou a ser tema no Supremo Tribunal Federal (STF). A descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez começou a ser julgada virtualmente pelos ministros. A então presidente do STF, ministra Rosa Weber, hoje aposentada, era relatora do processo e registrou o voto a favor de que a prática não seja considerada crime.
O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF, pediu destaque, interrompendo a tramitação virtual do processo. Agora, a ação só voltará à pauta quando colocada na agenda das sessões presenciais do tribunal, pelo próprio Barroso. No entanto, o voto de Rosa Weber já está computado como o primeiro favorável à descriminalização.
Essa não foi a primeira vez que o tema foi para o plenário da Corte. Em 2012, o futuro ministro do STF, à época advogado Luís Roberto Barroso, que representava a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde, disse na ação que as mulheres devem ter “o direito de não ser um útero à disposição da sociedade, mas de ser uma pessoa plena, com liberdade de ser, pensar e escolher”. Na ocasião, o Supremo legalizou a interrupção de gravidez de fetos anencéfalos.
“Viola a dignidade da pessoa humana o Estado obrigar uma mulher a passar por todas as transformações físicas e psicológicas pelas quais passa uma gestante, só que nesse caso ela estará se preparando para o filho que não vai chegar. O parto para ela não será uma celebração da vida, mas um ritual de morte. Essa mulher não sairá da maternidade com um berço, mas com um pequeno caixão. E terá de tomar remédios para secar o leite que produziu para ninguém”, afirmou Barroso.
No Brasil, o aborto é legalizado em três circunstâncias: gravidez decorrente de estupro; se representar risco de morte materna; e no caso de anencefalia fetal (não formação do cérebro do feto). Qualquer hospital que ofereça serviços de ginecologia e obstetrícia deve ter equipamento adequado e equipe treinada para realizar aborto legal.
O voto de Rosa Weber
A discussão sobre a descriminalização do aborto foi provocada no STF pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSol), autor da ação, e chegou a ser objeto de audiência pública em 2018, convocada pela ministra Rosa Weber. Em seu voto de 129 páginas, a magistrada citou que os artigos 124 e 126 do Código Penal não estão de acordo com a atual Constituição Federal. Na sua avaliação, é desproporcional atribuir pena de detenção de um a quatro anos para a gestante caso provoque o aborto por conta própria ou autorize alguém a fazê-lo, e também para a pessoa que ajudar ou realizar o procedimento. A ministra ressalta que o debate jurídico sobre aborto é “sensível e de extrema delicadeza”, pois suscita “convicções de ordem moral, ética, religiosa e jurídica”.
Um dos pontos destacados pela ministra é a falta de consenso sobre o momento do início da vida, tanto na ciência quanto no campo da filosofia, da religião e da ética. Weber cita que o “Estado, tem legítimo interesse e deveres na proteção da vida humana configurada no embrião e no nascituro conforme a legislação civil, por exemplo. Todavia, essa proteção encontra limites no Estado constitucional, e a tutela desse bem não pode inviabilizar, a priori, o exercício de outros direitos fundamentais também protegidos pela legislação nacional e tratados internacionais de direitos humanos, incluindo-se os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.”
A ministra destacou que, em diferentes países onde o aborto foi descriminalizado, houve redução do número de procedimentos, associada à ampliação do uso de métodos contraceptivos. Segundo Rosa Weber, após oito décadas de vigência da norma no Código Penal, é hora de colocar a mulher “como sujeito e titular de direito”, e não como uma cidadã de segunda classe, que não pode se expressar sobre sua liberdade e autonomia.
“Não tivemos como participar ativamente da deliberação sobre questão que nos é particular, que diz respeito ao fato comum da vida reprodutiva da mulher, mais que isso, que fala sobre o aspecto nuclear da conformação da sua autodeterminação, que é o projeto da maternidade e sua conciliação com todas as outras dimensões do projeto de vida digna”, ressaltou a ministra.
Por fim, a relatora destacou que, apesar da competência do Congresso Nacional para legislar sobre o tema, o Poder Judiciário é obrigado, constitucionalmente, a enfrentar qualquer questão jurídica a ele apresentada sobre lesão ou ameaça a direitos, seja da maioria, seja das minorias.
O processo agora
O novo ministro do STF, Flavio Dino, assumiu a relatoria de 340 ações da ex-ministra Rosa Weber, entre eles o processo que trata da descriminalização do aborto. Durante a sabatina na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), Dino se manifestou sobre a ação e afirmou que o voto de Rosa foi “respeitável”, mas que discorda do entendimento apresentado pela magistrada. Defendeu que o tema fosse discutido pelo Congresso Nacional.
Entre muitas discussões sobre o tema, há quem acredite que o assunto não deva ser debatido na Suprema Corte brasileira. O advogado criminalista e professor de direito penal Carlos Fernando Maggiolo acredita que a discussão é importante, mas não compete aos ministros do Supremo e, sim, ao Poder Legislativo. “Essa é uma decisão do povo, que elegeu seus deputados e senadores para lhes representar no Congresso Nacional. Esses, sim, eleitos pela vontade popular, são competentes para, através de lei, permitir ou proibir o aborto, em nome do povo”, afirma o advogado.
Já Laura Molinari, coordenadora da campanha Nem Presa Nem Morta, considera a ação essencial. “Eu acho que é uma dívida que a sociedade tem, sobretudo com as mulheres, que continuam sofrendo essa discriminação. Isso porque só quem pode engravidar é punida pela lei que criminalizada o aborto. Então é importantíssimo para garantir a igualdade nas leis brasileiras.”
“O STF questionar isso é exercer o seu papel democrático, julgando uma lei do Código Penal que está incoerente com a Constituição, é fazer esse reparo democrático com as mulheres e as pessoas que podem gestar”, comenta a ativista. “Eu acho que essa ação abre um grande debate sobre qual a eficácia de criminalizar o aborto e sobre qual a injustiça se provoca ao criminalizar essa prática que atinge principalmente mulheres jovens, negras e pobres.”
Pesquisa
De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2021, uma em cada sete mulheres com idade próxima aos 40 anos já fez pelo menos um aborto no Brasil. O levantamento realizado em novembro de 2021 ouviu 2 mil mulheres em 125 municípios.
O levantamento indica que mais da metade (52%) do total de mulheres que abortou tinham 19 anos de idade ou menos quando fizeram seu primeiro aborto. Deste contingente (abaixo de 19 anos), 46% eram adolescentes entre 16 e 19 anos e 6%, meninas entre 12 e 14 anos.
Em 2021, cerca de 10% das mulheres entrevistadas afirmaram ter feito pelo menos um aborto no decorrer de suas vidas, comparado com 13%, em 2016, e 15%, em 2010. A pesquisa concluiu que a queda pode ser explicada pela tendência crescente do uso de métodos contraceptivos reversíveis na América Latina e no Caribe.
“Isso quer dizer que o aborto é um fenômeno comum e real na nossa sociedade. Então, o fato é que ele acontece, e a criminalização não impede de ser uma realidade”, acrescenta a coordenadora.
No mundo
O dia 28 de setembro é Dia de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe. Na América Latina, diversos países legalizaram o procedimento. Em 2012, enquanto o Brasil ainda decidia se o aborto de anencéfalos era crime ou não, o Uruguai já legalizava a prática, independentemente da situação da gestante e da concepção. Em 2020, 2021 e 2022, a Argentina, o México e a Colômbia, respectivamente, se juntaram ao Uruguai.
A descriminalização é uma recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que defende que seja um direito de todas, sem limite de idade gestacional, e que se opte preferencialmente pelo aborto medicamentoso, com misoprostol e mifepristona, proibidos no Brasil.
Nesta semana, o Congresso da França aprovou o projeto de lei que constitucionaliza o direito ao aborto. A nova legislação inscreve na Constituição Francesa a “liberdade garantida da mulher de recorrer ao direito à interrupção voluntária da gravidez”, tornando a França o primeiro país a adotar tal medida.