Para o ministro Ribeiro Dantas, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o princípio in dubio pro societate, segundo o qual as dúvidas em certos processos devem ser resolvidas a favor da acusação, não existe. É apenas um atalho argumentativo para explicar que algumas decisões têm standards probatórios específicos.
Essa reflexão foi feita durante julgamento em que a 5ª Turma do STJ decidiu despronunciar um homem acusado de homicídio contra policiais militares. Contradições nos testemunhos e nas provas periciais levantaram dúvida sobre a autoria do crime, mas ainda assim a decisão foi de levá-lo a júri popular.
Para o ministro Ribeiro Dantas, a rigor, o princípio in dubio pro societate não existe
Ao julgar o caso, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) invocou genericamente o in dubio pro societate, sem fazer análise ou apresentar justificativas. Por unanimidade de votos, a 5ª Turma do STJ afastou a pronúncia e mandou encaminhar os autos à Corregedoria da Polícia Militar.
Na prática, a 5ª Turma manteve sua posição segundo a qual a etapa da pronúncia deve mesmo ser regida pelo princípio in dubio pro societate.
Isso significa que, para impor ao acusado um julgamento no Tribunal do Júri, não será necessário o mesmo nível de certeza sobre a autoria que demandaria uma condenação. As consequências para o réu são graves, uma vez que seu destino fica nas mãos do Conselho de Sentença, que é soberano e não precisa justificar sua decisão.
Esse entendimento se choca com a nova jurisprudência da 6ª Turma, segundo a qual mesmo na fase de pronúncia deve incidir o princípio in dubio pro reo (na dúvida, a favor do réu). O ministro Ribeiro Dantas tem o mesmo entendimento, e por isso decidiu fazer a ressalva aos colegas.
“Em minha visão, a rigor, o in dubio pro societate não existe. Quando nos referimos a ele como ‘princípio’, o utilizamos na verdade como uma simples metáfora ou um atalho argumentativo para expressar, em poucas palavras, que a pronúncia tem standards probatórios próprios, não se confundindo com uma sentença condenatória”, explicou.
“Para mim, o in dubio pro reo é, este sim, um verdadeiro princípio com carga constitucional, incidindo igualmente em todas as fases do processo”, acrescentou ele.
Esse tema tem uma importância enorme porque, ao longo das décadas, o uso do in dubio pro societate justificou a pronúncia de acusados de homicídio em situações de completa ausência de provas de culpabilidade, pelo fato de simplesmente não haver prova cabal da inocência.
Segundo o ministro Ribeiro Dantas, as decisões de pronúncia estão entre as mais problemáticas que o STJ enfrenta na Seção de Direito Criminal. Isso apesar dos avanços jurisprudenciais que buscaram conter os mais diversos excessos e ilegalidades.
Atualmente, a corte não mais valida decisões de pronúncia baseadas unicamente em provas obtidas na fase de inquérito ou mesmo por meio das provas de “ouvi dizer”, ainda que esse testemunho indireto tenha sido ratificado em juízo.
“No centro desse problema, permanece a incompreensão das instâncias ordinárias sobre os limites da pronúncia e os critérios de valoração probatória a ela aplicáveis, alimentada, em certa medida, pelo uso que fazemos do princípio in dubio pro societate”, avaliou o magistrado.
O voto do ministro Ribeiro Dantas ainda destacou que não existe no ordenamento jurídico brasileiro algo que possa levar a alguma presunção diferente da inocência, ao menos até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, conforme dita a Constituição Federal.
O Código de Processo Penal, que no artigo 156 aponta que a prova da alegação caberá a quem a fizer, segue o mesmo caminho. Se é o Ministério Público quem acusa, cabe a ele comprovar que o réu é culpado.
“Nesse contexto, o emprego do in dubio pro societate em nossas decisões tem gerado muita incompreensão por parte das instâncias ordinárias e órgãos de acusação, para quem a ausência de certeza absoluta quanto à inocência do réu deveria obrigar a pronúncia, o que é incorreto”, relatou.
A questão toda reside na análise dos indícios de autoria do crime contra a vida. Quanto à materialidade, tanto pronúncia quanto condenação exigem o mesmo juízo de certeza, conforme o artigo 113 do Código de Processo Civil.
Já para a autoria, o que diferencia pronúncia e sentença é o standard probatório: não haverá a necessidade da certeza no primeiro caso. Ainda assim, os indícios precisam ser fortemente corroborados, com alto grau de probabilidade, por provas claras e convincentes.
Suspeitas, boatos e a mera possibilidade de que o réu tenha sido o autor do crime não bastam para a pronúncia. Nesse ponto, não há divergência de entendimento entre as duas turmas criminais do STJ. Ambas têm sido rigorosas no exame da base probatória das pronúncias.
Com informações da Conjur