Na primeira reportagem da série “Novos horizontes da Justiça Restaurativa”, produzida pela Assessoria de Comunicação Social do TJCE, para marcar a Semana da Justiça Restaurativa, magistrados e magistradas compartilham experiências e percepções sobre essa prática e revelam o ideal de vê-la cada vez mais presente no dia a dia do Judiciário cearense.
Juízes que integram os órgãos gestores da Justiça Restaurativa no Judiciário cearense avaliam que o momento atual é dos mais propícios ao florescimento das práticas restaurativas. Desde 2021, o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) conta com o Órgão Central de Macrogestão e Coordenação de Justiça Restaurativa (criado pela Resolução do Órgão Especial nº 20/2021 e atualmente supervisionado pela desembargadora Andréa Delfino), conquista importante que preparou o terreno para os próximos avanços.
Na atual Gestão do Tribunal, o Núcleo de Justiça Restaurativa teve sua estrutura administrativa fortalecida, com a lotação e capacitação de servidores. Os facilitadores, responsáveis por conduzir os círculos restaurativos, também vêm ganhando maior reconhecimento: antes atividade exercida exclusivamente de forma voluntária ou em parceria com outras instituições, passou a ser remunerada pelo TJCE, em iniciativa pioneira.
Conjunto de técnicas que buscam levar o ofensor a se responsabilizar pelo seu ato e, com a participação ativa da vítima e demais pessoas afetadas, chegar a um acordo sobre a melhor forma de reparar o dano causado, a Justiça Restaurativa inicia sua trajetória de institucionalização no TJCE na área da Infância e Juventude.
Progressivamente, seu círculo se amplia, contemplando iniciativas já realizadas na Vara de Penas Alternativas e passando a abranger outras áreas, como a Violência Doméstica e, mais recentemente, a Vara de Custódia. Nesse movimento de expansão, caminha de mãos dadas com outras instituições públicas e da sociedade civil e com unidades e setores do próprio Tribunal, apoiando iniciativas que convergem com seus valores.
O crescimento da Justiça Restaurativa ocorre em âmbito internacional, tendo como marcos importantes, nesse cenário, a Resolução nº 12/2002 da Organização das Nações Unidas (ONU), a Declaração de Costa Rica sobre a Justiça Restaurativa na América Latina (2005) e a Declaração de Cartagena ou Declaração Ibero-americana de Justiça Juvenil Restaurativa (2015).
No Brasil, essa expansão vem sendo impulsionada pelo Conselho Nacional de Justiça, que definiu as diretrizes da Política Nacional de Justiça Restaurativa, por meio da Resolução CNJ nº 225/2016 e as alterações que constam na Resolução CNJ nº 300/2019.
Além disso, como afirmam os magistrados ouvidos nesta matéria, esse movimento se impõe pela própria complexidade dos conflitos sociais, que exigem da Justiça a renovação de seus métodos, para que possa fazer frente aos novos desafios e assim exercer o papel de contribuir para o bem-estar coletivo e a paz social.
Ao contarem suas próprias trajetórias de inserção na Justiça Restaurativa, afirmam que essa ferramenta veio ao encontro de seus anseios por um modelo de Justiça mais próxima das pessoas e pautada no diálogo como meio de transformação do ser humano, buscando resolver não apenas o processo, mas pacificar o conflito e as relações.
“Minha aproximação com a Justiça Restaurativa é anterior ao próprio conhecimento do que seria essa prática, por acreditar na restauração do ser humano. Dentro do Sistema de Justiça, eu percebi que as pessoas, em muitos casos, não estão só precisando resolver um processo, elas também precisam de restauração da vida, da alma, daquilo que são. Quando conheci a Justiça Restaurativa, vi que a gente tem disponível um instrumento que nos permite ir muito além da simples solução de um processo, pode alcançar, de fato, as pessoas”, afirma o juiz Edilberto Oliveira, coordenador do Órgão Central de Macrogestão e Coordenação da Justiça Restaurativa do TJCE e auxiliar privativo da 1ª Vara do Júri de Fortaleza.
Para a juíza Deborah Salomão, coordenadora do Núcleo de Justiça Restaurativa (Nujur) e titular do Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em Caucaia, o conhecimento da prática veio para reafirmar e potencializar a abordagem dialógica que já exercia.
“Eu acho que sempre fui uma juíza restaurativa. Quando atuava na Infância e Juventude, além de ouvir o adolescente infrator, eu já ouvia a comunidade, a mãe, o pai, às vezes o conselheiro tutelar, a professora, tentava sempre contextualizar e levar o adolescente a refletir sobre seu ato. Sempre construí esses diálogos, é uma visão com a qual eu me identifico. Então, quando eu descobri que o nome disso era Justiça Restaurativa, eu vi que existe outro caminho no construir da Justiça, que pode não ser só aquela solução imposta que tá na lei, tem outro jeito de a gente fazer as relações saírem melhores desse Sistema”, comenta.
Uma das características dos processos restaurativos é a flexibilidade, com práticas que podem ser adaptadas às necessidades e possibilidades de cada contexto, atuando de forma complementar ao método da Justiça convencional. O Núcleo de Atendimento ao Homem Autor de Violência contra a Mulher (Nuah), ligado à Vara de Penas Alternativas, é um exemplo dessa variedade, promovendo diversas intervenções que têm em comum o propósito de oferecer aos envolvidos uma oportunidade de transformação e recomeço.
“Desde 2010, o Nuah oferece apoio socioeducativo e psicossocial, com o objetivo de modificar comportamentos violentos. Com a ajuda de psicólogos e de grupos reflexivos, ajuda a trabalhar o machismo estrutural, a empatia, a assertividade, o olhar pra dentro de si e ter consciência do que causou para o outro e, para a vítima, dá a possibilidade de ter o dano reparado. Trabalhando tudo isso também com objetivo de diminuir a violência, pois as pessoas que fazem parte desse grupo têm um percentual muito pequeno de reincidência”, afirma a juíza Danielle Arruda, titular da Vara de Penas Alternativas e também integrante do Órgão de Macrogestão.
Como resultado das políticas institucionais, da ampliação do debate e das experiências exitosas, magistrados e servidores da Justiça mostram-se hoje mais abertos para conhecer a prática.
“Eu vejo um maior interesse, maior curiosidade, e as pessoas estão mais tranquilas de dizer ‘eu não sei o que é isso, me explica, eu quero aprender’. Deixou de ser aquela coisa meio mística, meio desconhecida, só para poucos especialistas. É hoje uma prática bem mais divulgada e penso que agora é só um crescente, a gente quer cada vez mais contagiar as pessoas”, afirma Deborah Salomão.
A percepção da sociedade também vem mudando, apesar de ainda restarem alguns preconceitos e desconhecimentos a serem desfeitos. “Uma das incompreensões é achar que a Justiça Restaurativa vem só para tentar ajudar o autor do dano. Não, ela vem considerando seriamente a vítima. Nas práticas restaurativas há espaço para a vítima, coisa que nosso sistema tradicional nem sempre consegue, e a sociedade hoje exige isso de nós. Estamos em um momento social em que as pessoas não admitem mais ser vítima de um crime, o que já é por si só extremamente constrangedor e prejudicial, e não poder ter um espaço para dizer o que aconteceu, o que estão sentindo”, complementa o juiz Edilberto Oliveira.
Por outro lado, afirmam, é preciso ter o olhar realista de que a Justiça Restaurativa não é a solução para todos os problemas, nem deve ser vista de maneira utópica. “Não é método terapêutico, nem se pretende uma solução mágica, fantasiosa, florida, em que a pessoa que sofreu e a que causou o dano vão ser felizes para sempre. O que a gente quer é resolver aquele conflito da melhor forma possível e a Justiça Restaurativa oferece um caminho para isso”, ressalta a juíza Deborah Salomão.
Para ela, é preciso “mudar as lentes” com que se enxerga a Justiça, para assumir a perspectiva restaurativa. “Ao invés de fazer a pergunta ‘o que você acha que deve acontecer com a pessoa que cometeu um crime’, devemos questionar ‘o que você acha deveria acontecer com você, ou com seu filho, ou com alguém próximo, se cometesse um crime’. Nesse caso, as respostas não são mais aquelas ‘eu quero que pague, que vá pra cadeia, que morra’, esse é o Direito Penal do inimigo. Quando se colocam nesse lugar, de que também pode ser com elas, as respostas são sempre muito restaurativas”, observa.
As lentes da Justiça restaurativa também permitem enxergar mais longe: ao invés de se fixar no passado e na culpa, dizendo apenas “você fez isso e deve ser castigado!”, direciona o olhar para o futuro com a questão “o que você pode fazer agora para restaurar isso?”, tendo como horizonte a restauração dos laços sociais e a construção de uma sociedade mais justa e pacífica.
Nas próximas matérias da série “Novos Horizontes da Justiça Restaurativa”, saiba mais sobre o papel dos facilitadores nos círculos restaurativos, conheça o recém-iniciado projeto Custódia Restaurativa e acompanhe histórias de transformação de autores de violência doméstica que participam de círculos de construção de paz, uma parceria da Justiça cearense com a Pastoral Carcerária.