Nesta segunda-feira (1/02), Maria da Penha, a mulher que dá nome à Lei que protege as mulheres no Brasil, completa 76 anos e faz um apelo ao STF no dia do seu aniversário. Em carta enviada ao presidente do STF, ministro Luiz Fux, que citou Maria da Penha no seu discurso de abertura do Ano Judiciário, ela pede providências no combate à violência contra as mulheres no Brasil.
Para Maria da Penha, não há muito o que comemorar e cobra ações do Supremo Tribunal Federal. “O STF precisa focar nos casos de violência contra a mulher para melhorar a questão da implementação da lei que leva meu nome. Faltam políticas públicas para colocar a Lei em prática. Pouca coisa melhorou e o que depende de política pública, estacionou”, diz.
Maria da Penha também ressalta a importância da aplicabilidade correta da Lei Maria da Penha, que deve ser híbrida e não pode ser ignorada em audiências da Vara de Família. Segunda ela, o maior presente no dia do seu aniversário seria ter respostas para as perguntas que coloca na carta. “Minha intenção com esta carta é esperança. Esperança de ver a Lei Maria da Penha verdadeiramente implementada. Esperança de que nenhuma mulher mais precise passar pelo que passei. Esperança de que não haja mais descaso com a violência doméstica no Brasil. Esperança de que a mulher possa ter vida e vida em abundância.”
Confira abaixo a carta:
CARTA DE MARIA DA PENHA FERNANDES AOS MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF)
Excelentíssimo Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal, Dr. Luiz Fux e demais Ministros desta Corte, saudações
Primeiro de fevereiro é sempre uma data especial para mim, é o dia do meu aniversário. Este ano completo 76 anos de vida, uma vida, como todos sabem, cheia de dias difíceis com muito sofrimento, mas também de muitas alegrias. Sou de um outro século e também de um outro milênio. Nasci em 1945, ano em que terminou a Segunda Grande Guerra Mundial, embalando nossas esperanças de um mundo de paz e de superação. O fim da guerra demarcou o início de um grande pacto e o desfecho de um tempo esgotado das dores e dos sofrimentos e materializou, em 1948, o que é para mim um dos mais importantes documentos de nossa história atual: a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Talvez, de lá para cá, nunca antes um documento contendo simplesmente um conjunto de dispositivos e assertivas, se mostrou tão importante. Contrariando a ideia de que a grandeza do que podemos realizar está em monumentos de pedra erigidos por anos de trabalho, a Declaração Universal dos Direitos Humanos consolidou o que é talvez uma das ações mais significativas que foi possível realizar: a superação das desigualdades, da indiferença e dos preconceitos que nutrem a crise entre homens e mulheres.
Sob a batuta de Bertha Lutz, uma das nossas mais ilustres feministas, demos ali um importante passo, de uma ainda talvez longa caminhada, cujo objetivo é a superação de muitas formas de violência e da bestialidade humana que insistimos em nutrir entre nós. A fé nos direitos fundamentais do ser humano, na dignidade, no valor da pessoa humana, no desejo de liberdade e paz e na igualdade de direitos do homem e da mulher com vistas à promoção do progresso social e melhores condições de vida, é certamente um marco que devemos celebrar.
No entanto, sabemos que as leis, os dispositivos e mesmo as assertivas colocadas em papéis, precisam tomar corpo. Sem o seu exercício efetivo, sem nos comprometermos em seguir o que por diversos modos mostrou sua altura e nobreza, somos fadados à repetição e ao círculo vicioso do sofrimento. E como todos também sabemos, talvez aí se encontre nossa maior dificuldade.
Minha história é um pouco a mistura dessa contradição. Passados 38 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 29 de maio de 1983, mesmo diante de todas as conquistas civilizatórias que falavam de um mundo mais justo, eu sofri o que ninguém mais deveria sofrer, ou seja, a violência mortal por meu próprio marido, na época, na forma de múltiplas agressões duas tentativas de assassinato.
Desde o acontecido, que insisto em lembrar para que outras não sofram o que sofri, lutei em defesa da minha dignidade, da minha honra e do meu valor enquanto pessoa humana. Por 19 anos e seis meses. Dos 38 anos de idade, nos idos de 1983 quando sofri a tentativa de assassinato, até a resposta da justiça brasileira ao caso, foram exatos 19 anos e 6 meses de luta. Eu já estava com 57 anos de idade quando o meu agressor foi preso.
Por livramento de Deus, seu ódio não teve pleno sucesso, embora tenha me deixado marcas físicas que jamais poderei superar. As dores mais profundas na minha psique não se apagaram e só foram superadas porque sobrevivi, graças a Deus, o que me permitiu ter uma segunda chance – mesmo com muitas limitações. Assim, foi possível acompanhar o desenvolvimento das minhas filhas, participado das suas muitas alegrias e por estar usufruindo do crescimento e desenvolvimento das minhas 3 netas e 3 netos.
Infelizmente, tal oportunidade não teve a Juíza Viviane Arronenzzi! Fico pensando como será explicado às suas filhas o que ocorreu quando tiverem consciência da sua cidadania, quando tornarem-se mulheres e mães?
Na minha história, a dor se transformou em luta e o pesadelo vivido se transformou no sonho de poder, de certo modo, contribuir para que se possa superar o escândalo dessa covardia insistente em nossa sociedade. Sou apenas uma de tantas outras, sou uma sobrevivente entre milhares que não tiveram a mesma sorte. Por algum acaso do destino, consegui escapar das estatísticas que falam de um Brasil mortal, que a cada minuto ceifa a vida de mulheres como eu, pelo simples fato de não desejarem mais manter uma relação ou pelo simples fato de serem mulheres. A Lei que carrega meu nome, como os dispositivos presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos, é uma conquista, mas ela não pode ficar só no papel.
Este ano, a Lei Maria da Penha completa 15 anos. No entanto, os casos da adolescente Eloá (assassinada pelo ex-namorado em 2008), da atriz e modelo Eliza Samúdio (assassinada pelo jogador Bruno, em 2010), da advogada Mércia Nakashima (assassinada pelo namorado, em 2010), da cabeleireira Maria Islaine (assassinada pelo ex-marido, com 9 tiros diante das câmeras do salão onde trabalhava – mesmo com oito boletins de ocorrência e medida protetiva, em 2010) e da procuradora federal Ana Alice Moreira de Melo (assassinada pelo marido, em 2012), mostram que a lei, sem sua efetiva execução, nada é, nada significa e nada diz. Uma lei elaborada por pessoas como nós precisa de mecanismos eficientes para sua real existência. Ou seja, a lei depende do nosso compromisso, do nosso trabalho, do nosso efetivo envolvimento com ela e da aceitação de tudo o que ela representa. Se a lei por si só não é garantia, é porque ela precisa de cada um de nós, do trabalho efetivo e do compromisso daqueles que ainda têm lucidez e discernimento.
Com informações do Papo de Mãe, no UOL