A Escola Paulista da Magistratura (EPM) promoveu o seminário Perspectiva Antirracista no Sistema de Justiça Criminal, sob a coordenação do desembargador Gilberto Leme Marcos Garcia, supervisor do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF) do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), e da juíza Maria Fernanda Belli, assessora do GMF.
A juíza Camila de Jesus Mello Gonçalves, conselheira da EPM, lembrou que a Escola realizou cursos sobre racismo e discute a temática nos cursos de formação inicial e continuada de magistrados, cumprindo agenda nacional do Poder Judiciário e as resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), “sensível à importância do tema e de aprofundarmos a reflexão sobre a perspectiva antirracista no Judiciário”.
O desembargador Leme Garcia enfatizou o papel da cultura afro-brasileira na construção histórica do Brasil e a necessidade de maior representatividade da população negra, especialmente no Sistema de Justiça, ponderando que a existência do chamado racismo estrutural no sistema de Justiça Criminal é parte do racismo da sociedade. Apontou como a gênese do problema o fato de que a Lei Áurea pôs fim à escravidão, mas não trouxe medidas sociais para garantir sobrevivência digna das pessoas até então escravizadas.
“Essa situação perdurou mais de 120 anos, quando as primeiras medidas de inclusão foram estabelecidas, e novamente houve forte resistência das elites. A meu ver, não vai mudar enquanto a população não aceitar a perda de privilégios”, ponderou, frisando a importância da postura antirracista e da conduta proativa.
A procuradora do Estado Inês Prado discorreu sobre o papel do Judiciário e dos órgãos da Justiça em relação ao racismo. Ela recordou a evolução do sistema prisional no Brasil, destacando marcos do combate ao racismo e reflexos da herança escravista na atuação dos agentes da Justiça e na aplicação da legislação antirracista.
Mencionou dados sobre o percentual de negros na população brasileira (51%) e na população penitenciária do país (67,5%) e salientou que os negros representam 61% dos presos no estado de São Paulo, apesar de serem 35% da população.
Citou ainda problemas como a quase ausência de educação antirracista na rede de ensino e o baixo percentual de pessoas negras no sistema de Justiça, ponderando que as políticas afirmativas e as cotas são importantes, mas não suficientes, apontando a necessidade de repensar a formação jurídica. “Não é possível fazer justiça sem abrir mão de algo pelo outro e a pergunta é: nós realmente estamos dispostos a fazer isso?”, concluiu.
O advogado José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, presidente de honra do evento, afirmou que a discussão da agenda antirracista em um evento do Poder Judiciário, próximo ao aniversário de 135 anos da assinatura da Lei Áurea (13 de maio) é auspiciosa: “essa iniciativa nos enche de esperança e permite constatar como essa perspectiva de mudança é exequível, se tivermos disposição e vontade de fazê-la. Nessa mesa, vemos a potência e a possibilidade do sonho e do compromisso com essa transformação”.
O juiz Jarbas dos Santos discorreu sobre o tema “Os equívocos no enfrentamento do racismo e seus reflexos”, apresentando um panorama histórico-conceitual e hermenêutico. Citou como exemplo da importância conceitual a discussão jurídica na distinção entre o que é racismo e o que é injúria racial, que têm consequências jurídicas muito distintas.
E esclareceu a natureza estruturante do racismo: “a sociedade e todas as relações nela estabelecidas são perpassadas pelo racismo, ainda que muitas vezes não nos atentemos a isso”. O expositor explanou também sobre a prática institucionalizada do racismo, que se tornou naturalizada e justificada e o papel da magistratura no sistema de repressão penal.
O juiz Fabio Esteves explanou sobre o perfilamento racial no sistema de Justiça Criminal. Ele explicou que perfilamento, segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), é uma tática adotada por supostas razões de segurança e proteção pública motivada por estereótipos baseados em raça, cor, etnia, idioma, descendência, religião, nacionalidade, local de nascimento ou combinação desses fatores, em vez de suspeitas objetivas, o que tende a isolar indivíduos ou grupos de forma discriminatória, com base na suposição errônea de que pessoas com tais características são propensas a se envolver em crimes específicos.
Citou jurisprudência e falou sobre as consequências desse perfilamento, como a criminalização de certas categorias de pessoas, reforço de associações estereotipadas enganosas, taxas de encarceramento desproporcionais, maior vulnerabilidade ao abuso de força ou autoridade por parte de policiais, subnotificação de atos de discriminação racial e crimes de ódio e condenação com penas mais duras.
O desembargador Luiz Antonio Cardoso, coordenador da Coordenadoria Criminal e de Execuções Criminais do TJSP, salientou que não se pode esperar mais cem anos para que ocorram transformações concretas. Ele lembrou que o sistema prisional está abarrotado e que o número de negros prevalece. “Quando olhamos para o todo, vemos que algo está errado”, observou.
Ele frisou que a participação da sociedade na execução da pena é imprescindível, contribuindo para a recuperação das pessoas. E lembrou que a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) determinou a criação em todas as comarcas de conselhos da comunidade formados por advogado, defensor público, assistente social e representantes da sociedade, mas disse não se recordar de ver pessoas negras participando desses conselhos e assumiu o compromisso de incentivar essa participação.
Redação Jurinews, com informações do TJ-SP