Todos os dias, milhares de homens, mulheres, crianças no Brasil são vítimas de violência sexual, doméstica, policial e racial. Contudo, quase todos os instrumentos legais existentes no país visam responsabilizar os infratores, e quase nada há para acolher essas vítimas.
Um projeto que tramita no Congresso Nacional, idealizado por grupo de profissionais da área jurídica, de saúde, religiosos e entidades da sociedade civil de São Paulo, busca mudar essa situação. O plano inclui uma série de medidas, sendo a principal delas despertar nas autoridades um olhar especial para as vítimas e não só para os crimes.
Entre as medidas previstas pelo “Estatuto das Vítimas”, como é chamado Projeto de Lei 3890/2020, está, por exemplo, a implantação nas escolas de juízes e promotores aulas sobre vitimização, “a fim de aumentar a sensibilização” desses profissionais.
Isso também valeria para defensores públicos, profissionais da área da saúde e assistência social: aulas de empatia para com as pessoas que sofrem.
“O que as vítimas de crimes têm de apoio? Elas têm basicamente nada”, disse disse a promotora Celeste Leite dos Santos, do Ministério Público de São Paulo.
“O processo criminal é binário. É uma relação estado ofensor. Não tem nenhuma relação estado vítima. Ela não é tratada como pessoa, com dignidade. É tratada como um objeto. A Constituição fala que você precisa proteger a dignidade da pessoa humana, mas, precisa ser para os dois lados”,Celeste, do Avarc (Projeto Acolhimento de Vítimas, Análise e Resolução de Conflitos), coordenou o grupo de trabalho que desenvolveu projeto de lei.
Também integraram esse grupo outros promotores paulistas, representantes do Projeto Hígia Mente Saudável, professores, policiais, advogados, psicólogos e também ajudaram representantes da OAB-SP.
“É uma mudança de olhar para as vítimas. Esse é o principal sentido do projeto. Mudança de olhar. Colocar o foco principal nos operadores de direito nessa questão, que a cada dia aumenta, infelizmente”, diz o deputado Rui Falcão (PT-SP), autor do projeto na Câmara.
Ainda de acordo com a promotora, com aprovação desse estatuto, os Tribunais de Justiça de todo o país, assim como o Ministério Público nos estados, teriam de se adaptar para incluir essas aulas de “empatia” para as autoridades.
“Eles [os tribunais e a Promotoria] poderiam colocar qual vai ser o conteúdo da vitimologia, mas eles obrigatoriamente vão ter que fornecer esse tipo de capacitação”, afirmou Celeste.
De acordo com Rui Falcão, embora possa haver dificuldades para aprovar um projeto nessa linha na atual conjuntura, há sinais de que outros partidos possam apoiá-lo, porque, afirma o deputado, é necessário e urgentemente.
“Tudo que envolve direitos humanos –e claro que esse projeto é vinculado a direitos humanos– sempre encontra resistência do pessoal da bancada da bala. Mas, esse é um projeto que pode apoio de várias bancadas”, disse. Ainda segundo parlamentar, o volume de casos de violência no Brasil acaba por fazer com que as pessoas os naturalize.
“As pessoas vão somando os fatos como se isso fosse uma coisa normal. Então, o projeto também visa não permitir a naturalização”, afirma. “Você precisa mudar o olhar das autoridades, dos representantes do Ministério Público, dos juízes, os policiais.”
Essa discussão, segundo ele, tentar fugir da tendência do punitivismo. Tentar resolver todas situações com a prisão de pessoas. Além das aulas de empatia para juízes e promotores, o estatuto também prevê uma série de cuidados com a vítima para evitar que o sofrimento aumente, algo que, não raro, acontece.
Uma das medidas é ter apenas um depoimento da pessoa e, em caso de necessidade de novos esclarecimentos, apontar quais dúvidas precisarão ser sanadas. Episódios recentes em que a vitima chega a ser ofendida pelo juiz serve, de contraexemplo.
“Não se pode ficar desqualificando a vítima. A revitimização causa um trauma que as vezes é muito pior do que o trauma causado pelo crime praticado”, diz ele.
Além de vítimas de crime, o estatuto também prevê apoio a vítimas de pandemias, como da Covid-19, e de tragédias como Mariana, em Minas Gerais.
Além de amparo psicológico, as famílias terão direito de acompanhar os processos e ter acesso a laudos, por exemplo, algo que muitas vezes lhes é negado. “Não há uma garantia total que a partir de uma lei, de um estatuto, tudo se altere da noite para o dia, mas contribui muito”, disse Rui Falcão.
Fonte: Folha Press