Na falta de regulamentação específica sobre o controle sanitário de medicamentos à base de canadibiol, o Poder Judiciário tem tomado a frente da questão quando provocado.No Senado tramitam quatro projetos de regulamentação do plantio e da manipulação da cannabis para fins medicinais.
O mais abrangente deles é o Projeto de Lei 399/2015, que, entre outros pontos, busca disciplinar desde o cultivo de cannabis, tanto para extração de CBD como de THC e outros canabinoides, até a fabricação e comercialização de produtos.
A proposta também autoriza a pesquisa científica da cannabis de um modo geral e regulamenta o plantio de cânhamo (sem THC) para uso industrial, mas não envolve o chamado uso recreativo (ou adulto) da maconha.
Porém, enquanto a discussão legislativa não avança, as pessoas que precisam de medicamentos à base de canadibiol têm recorrido ao Judiciário. E vêm sendo atendidas. No último dia 14 de junho, o Superior Tribunal de Justiça concedeu salvo-conduto para plantio e produção de óleo de maconha.
O entendimento da 6ª Turma do STJ foi que o cultivo da cannabis sativa para extração do princípio ativo é conduta típica apenas se desconsiderada sua motivação e sua finalidade. A norma penal mira o uso recreativo e a destinação para terceiros, visto que nesses casos se coloca em risco a saúde pública. A relação de tipicidade não existe na conduta de cultivá-la para extrair óleo para uso próprio medicinal.
Além da decisão do STJ, o Judiciário já determinou que planos de saúde devem fornecer medicamentos à base de canadibiol e que farmácias de manipulação podem comercializar o medicamento.
A advogada Daniela Ito explica que, apesar da liberação da comercialização de medicamentos à base de canadibiol no país, a restrição da venda desses produtos pelas farmácias que não manipulam remédios favorece as grandes redes de drogarias. “Agora, através de medidas judiciais, as farmácias com manipulação estão obtendo autorizações para produzir e comercializar os produtos. Tudo isso repercute em benefício de quem realmente interessa nessa complexa relação: o paciente”, explica ela.
Daniela é especialista em Direito Médico, professora de Direito Penal e sócia do escritório Fonseca Moreti Ito Stefano Advogados. Segundo ela, o progressivo aumento da oferta de produtos derivados da cannabis para fins terapêuticos tende a baixar o preço dos produtos. “Tal panorama serve para explicar que a intervenção do Judiciário no sentido de autorizar o cultivo de cannabis, ainda que pretenda atender a demandas em saúde, já não tem mais fundamento no contexto atual, uma vez que os pacientes podem encontrar produtos à venda no país. Inclusive é possível requerer medicamentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS)”.
Melissa Kanda, advogada especialista em Direito Médico e à Saúde, explica que desde 2019, por meio da RDC 327/2019, a Anvisa autoriza pessoas jurídicas a importar ou fabricar produtos à base de canabidiol no país.
“Até então, somente as pessoas físicas estavam autorizadas a importar, em seu nome, esses produtos para uso próprio mediante prescrição médica, portanto, a comercialização no Brasil era proibida”.
Segundo ela, o RDC 327 regulamentou o procedimento para concessão da autorização sanitária para importação e fabricação dos produtos no país, motivo pelo qual não pode se falar em falta de regulamentação pela Anvisa.
Entretanto, o plantio da cannabis sativa, mesmo que exclusivamente destinada à fabricação de produtos medicinais, continua sendo proibido. Da mesma forma, a planta não pode ser importada para fabricação dos produtos no país, mas somente o insumo farmacêutico nas formas de derivado vegetal, fitofármaco, a granel ou produto industrializado.
Essas limitações tornam os valores de medicamentos à base de canadibiol muitas vezes inacessíveis a muitos pacientes. E é aí que o Poder Judiciário tem atuado na resolução de conflitos, seja por demandas de pessoas físicas, seja por ações ajuizadas por farmácias de manipulação que desejam comercializar os remédios.
Direito à saúde
Melissa explica que as inúmeras decisões judiciais que autorizam o plantio e a extração artesanal dos produtos por meio de Habeas Corpus não podem ser encaradas como uma intervenção indevida do Judiciário em uma matéria que deveria ser disciplinada pelo Legislativo. “Não se trata de o Poder Judiciário estar legislando sobre o assunto, mas de estar garantindo o direito constitucional à saúde àqueles pacientes que já esgotaram alternativas terapêuticas tradicionais, sem sucesso no controle das suas doenças, e encontram nos produtos a base de canabidiol uma alternativa de tratamento”.
Christiany Pegorari Conte, advogada e professora de Direito Penal e Processual Penal da PUC Campinas, segue a mesma linha. Segundo ela, o Judiciário mais uma vez tem tomado a frente na resolução dessa questão.
“Tal como de outras, na falta da atuação do Poder Executivo e do Legislativo, pois qualquer assunto relacionado ao uso da maconha, ainda que para fins medicinais, acaba relacionado com discursos morais, políticos, preconceitos que impedem que a questão seja tratada como de saúde pública, ao invés de passar pelos aspectos criminais”.
O presidente da Comissão Especial de Bioética da OAB-SP e advogado da área da saúde Henderson Fürst cobra um regramento mais efetivo por parte da Anvisa. “Quando a autoridade sanitária se recusa a regular adequadamente a cannabis medicinal diante de todos os avanços que a medicina baseada em evidências e a clínica médica tem demonstrado, a atuação do Poder Judiciário apenas efetiva o direito fundamental à saúde. É inadmissível que incontáveis países com ciência altamente desenvolvida já possua regulação adequada, e que inclusive países vizinhos tenham regulamentos mais avançados, até mesmo para aproveitar a demanda internacional, e regulação brasileira permaneça recalcitrante quanto à cannabis, num modelo regulatório ultrapassado, insuficiente e omisso”.
O criminalista Conrado Gontijo tem o mesmo entendimento. Ele acredita que a atuação do Judiciário tem preenchido uma lacuna normativa que poderia ser solucionada com uma atuação técnica da Anvisa. “A importância do canabidiol em tratamentos médicos é reconhecida em inúmeros estudos científicos e, por isso, a Anvisa, órgão técnico que tem competência para definir o conceito de substância entorpecente, poderia oferecer uma solução de caráter geral para a matéria”.
Segundo ele, a discussão sobre o uso do canabidiol é envolta por preconceitos, o que acaba fazendo com que a evolução ocorra muito lentamente. “Por isso, as decisões do Judiciário são importantes, porque asseguram o direito à saúde nos casos concretos, mas também evidenciam a importância de que o tema seja efetivamente enfrentado pelo órgão competente”.
Com informações da Conjur