Com a maior população indígena do Brasil, Roraima foi um dos quatro estados a receber o projeto-piloto realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para a elaboração do Manual Prático para Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes de Povos e Comunidades Tradicionais. Os trabalhos reforçaram a importância de os procedimentos de atendimento levar em consideração os contornos interculturais e de contemplar as especificidades linguísticas e socioculturais dessas comunidades para proteger a infância nessas localidades.
Em Roraima, dos 631 mil habitantes, mais de 50 mil se declaram indígenas, de acordo com Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No entanto, segundo o juiz Marcelo Lima de Oliveira, do Tribunal de Justiça de Roraima (TJRR), ainda não há muito relacionamento com esses povos. “É preciso uma compreensão do Judiciário em relação à cultura e à forma de falar dos povos indígenas. E, sem esse entendimento, mesmo com o intérprete, há uma dificuldade de fazer as perguntas de forma que a criança possa entender. É preciso ter um trabalho mais apurado em relação à compreensão cultural”, afirmou.
O juiz relata que 88% dessa população vive em terras demarcadas, como a terra indígena Raposa Serra do Sol, e o restante vive nas cidades. “A sociedade em Roraima já é muito mesclada e por isso a cultura indígena é mais fluida. Ainda assim, há uma tendência de não se aceitar a cultura indígena se não for de um povo isolado”, explicou. Entre as etnias com o maior número populacional estão os yanomamis, os macuxi e os uapixanas.
Depoimento especial
Criado para evitar a revitimização de crianças e adolescentes que sofreram ou testemunharam casos de violência, o depoimento especial é realizado por meio de atuação sistêmica e coordenada entre as instituições que integram o sistema de garantia de direitos. De acordo com a juíza auxiliar da Presidência do CNJ Lívia Peres, as orientações do Manual Prático para Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes de Povos e Comunidades Tradicionais servem de diretrizes a serem customizadas em planos de ação de acordo com as especificidades das etnias com as quais trabalham. “Após essas discussões, os tribunais deverão desenvolver o treinamento especial para os profissionais envolvidos, tendo como base o diagnóstico antropológico que deu origem ao Manual Prático”, explicou.
Há a possibilidade ainda de as Cortes trabalharem em parceria não apenas com a rede de apoio, mas também com a Academia. Segundo a consultora do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e antropóloga Luciana Ouriques, durante sete meses foi realizado um projeto-piloto com quatro tribunais de Justiça – Bahia, Mato Grosso do Sul, Amazonas e Roraima.
Nesse último, havia um professor contratado como perito, o que permitiu não apenas a realização do trabalho, mas também dar início à mobilização para a construção de pontes de diálogo com todos os envolvidos. “Foram identificados 75 processos de crianças de comunidades tradicionais nessas localidades. Mas cada região mostrou suas dificuldades e adaptou o projeto às suas especificidades.”
Para Luciana Ouriques, que também foi a responsável pelo desenvolvimento do diagnóstico antropológico e do Manual Prático, o ideal é que o projeto tenha continuidade, seja consolidado e possa ser desenvolvido e aplicado por outros tribunais. “O projeto-piloto trouxe uma postura reflexiva sobre a interculturalidade que deve fundamentar as políticas públicas que envolvem os povos tradicionais”.
Parcerias
Atualmente, o Judiciário de Roraima desenvolve o projeto “Justiça Integrada”, atuando junto ao povo waimiri-atroari, que fica na divisa com o Amazonas, cortada pela BR-174. “Estamos fazendo parcerias, buscando uma interação maior com intérpretes, para facilitar o contato”, contou Marcelo Oliveira. Hoje, conta-se com oito tradutores dos cinco principais troncos linguísticos: uapixana, uaiuai, yanomami, yekuana e macuxi. “Nossa intenção é reduzir o distanciamento das comunidades, mas enfrentamos dificuldades institucionais com os repetidos conflitos nas áreas demarcadas, especialmente na Raposa Serra do Sol. Temos que lidar com a desconfiança e a articulação fica prejudicada”, explica.
O depoimento especial já está implantado nas comarcas de Roraima desde 2017. Por causa da situação da pandemia do novo coronavírus, o juiz contou que foi preciso adaptar para manter a escuta protegida. “Em Pacaraima, fizemos o depoimento especial embaixo de uma árvore. Isso porque a própria comunidade indígena quer uma solução.”
Apesar de todos os desafios, o Manual do CNJ/PNUD é visto como uma iniciativa positiva. “Essas orientações qualificam nosso trabalho. Quando vêm do CNJ, nos impulsiona e conseguimos avançar nesse trabalho em que já vínhamos engatinhando.”
Diretrizes
A partir da Resolução CNJ n.299/2019, que estabelece a implementação da escuta protegida para crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, conforme disposto na Lei 13.431/2017, o CNJ definiu um Grupo de Trabalho para debater a implementação dos normativos às comunidades e povos tradicionais. Em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o GT propôs o levantamento de um diagnóstico sobre como as oitivas estavam sendo feitas nas comarcas indicadas pelos tribunais que participaram do projeto-piloto, o que resultou na definição de diretrizes gerais para a realização dos depoimentos especiais.
O “Manual Prático para Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes de Povos e Comunidades Tradicionais” traz um conjunto de 14 orientações aos tribunais, que se referem desde a identificação do povo à estruturação do Judiciário para implementar a escuta protegida. Dentre os objetivos que nortearam sua produção estava o de garantir os direitos diferenciados de cada comunidade, a proteção integral e resolução de conflitos tradicionais da infância e juventude, de modo a promover a construção do direito dessa população.
Entre as orientações estão os modos de proteção e pluralismo jurídico, segundo a cultura da comunidade tradicional; a consulta e participação dos povos e comunidades; a identificação étnica e língua da criança ou do adolescente; a capacitação de entrevistadores forenses, intérpretes forenses e mediadores culturais; como preparar o local para a coleta do depoimento especial; o planejamento da audiência de depoimento especial dos povos e comunidades tradicionais; e o planejamento, monitoramento e avaliação das ações, entre outras.
Com informações do CNJ