A aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 10/2017 pelo Senado, apelidada de “PEC da Relevância”, institucionaliza o que se costuma chamar de “jurisprudência defensiva” no Superior Tribunal de Justiça (STJ), de acordo com especialistas. O jargão resume a criação de entraves e requisitos que impedem o conhecimento de recursos pela Corte.
Caso seja aprovada pela Câmara da mesma forma que passou no Senado, a principal consequência da PEC será esvaziar ainda mais o papel do STJ e o acesso dos vulneráveis à Justiça.
Segundo o texto aprovado pelo Senado, o artigo 105 da Constituição passa a contar com mais dois parágrafos. Um deles diz que, no recurso especial, a parte “deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo não o conhecer por esse motivo pela manifestação de dois terços dos membros do órgão competente para o julgamento”.
E o outro novo dispositivo prevê que essa relevância existe em seis situações: i) ações penais; ii) ações de improbidade administrativa; iii) ações cujo valor de causa ultrapasse quinhentos salários mínimos; iv) ações que possam gerar inelegibilidade; v) hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça; vi) outras hipóteses previstas em lei.
Como aponta o professor de Processo Civil, advogado Daniel Neves, o principal problema da PEC é tirar o caráter uniformizador da interpretação das leis federais das mãos do STJ. “Hoje existem divergências entre tribunais de segundo grau que, em tese, não serão causa de relevância. Juridicamente, o maior problema é que, dependendo do estado, da região, você tem um resultado diferente”, explica.
Para ele, a lei faz a ressalva de que têm relevância garantida os processos que contrariem jurisprudência da Corte, mas os temas que não tiveram entendimento pacificado até agora podem não mais chegar ao STJ.
“Na prática, embora o intuito seja racionalizar os trabalhos, é preocupante pensar que a arguição de relevância pode ser usada como instrumento da famigerada jurisprudência defensiva, obstaculizando o acesso à justiça recursal”, concorda o professor de Direito Processual Civil da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), defensor público Maurilio Casas Maia.
Direito sumular
Não é de hoje que o STJ enfrenta críticas por supostamente usar critérios arbitrários para o conhecimento de recursos. Até agora, o grande vilão tem sido a súmula 7, que diz que “a pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”.
Parece um enunciado óbvio, que apenas diz que Corte superior não pode rediscutir fatos ou provas. Mas o tribunal pode examinar se a apreciação jurídica dessa prova foi feita de forma adequada. O problema é que a aplicação da súmula 7 é usada para que o tribunal se exima de julgar ilegalidades, segundo os críticos.
Um levantamento feito por Rafael Carneiro, do IDP, mostrou que a 2ª Turma do STJ aplica a súmula 7 duas vezes mais do que a 1ª (39% dos casos contra 18%). Os dois ministros desses colegiados que mais a invocam chegam a usá-la em metade dos casos analisados, enquanto outros dois, já aposentados, nunca a citaram.
“Finalmente, bastante curioso que o verbete seja aplicado em 11,54% e em 20,24% das decisões quando o recurso especial é interposto pela Administração ou pelo Ministério Público, respectivamente, e em 31,58% e em 34,39% quando o manejo se dá por pessoas jurídicas privadas ou por agentes públicos réus, também respectivamente”.
Ou seja, segundo a análise dos advogados, a súmula 7 é usada, por alguns ministros e algumas turmas, para “barrar” recursos que seriam aceitos por outros ministros e outros colegiados.
O professor do IDP e autor do estudo, advogado Rafael Carneiro, afirma que é salutar discutir formas de aprimorar a eficiência e a celeridade nos julgamentos dos tribunais brasileiros. “Porém, a limitação excessiva de recursos ao STJ pode prejudicar a sua função uniformizadora da jurisprudência”, diz.
“Além disso, a ausência de clareza sobre os parâmetros que serão utilizados para determinar o que é relevante ou não pode gerar excesso de subjetivismo. Como já demonstramos em estudo empírico, a taxa de não conhecimento dos recursos no STJ hoje varia bastante a depender do relator, de quem recorre e da matéria tratada”, complementa.
Às claras
Para Daniel Neves, o caráter positivo da PEC da Relevância é que a barreira de contenção agora é explícita. “Sob a ótica da honestidade institucional, é melhor que seja assim, porque já se sabe a regra do jogo de antemão. ‘Esse tipo de processo não vai até o STJ e acabou.’ É um tratamento mais honesto com o jurisdicionado do que inventar pelo em ovo para não admitir o REsp que, abstratamente, é cabível.”
Na mesma linha, a constitucionalista Vera Chemim, diz que o impacto da PEC terá uma importância fundamental, “uma vez que o STJ tem funcionado muito mais como um tribunal de terceira instância, examinando, inevitavelmente, provas e fatos que deveriam estar sob o crivo exclusivo da primeira e segunda instâncias, ao invés de exercer, realmente, a sua função de garantir o cumprimento de tratados e leis federais, eventualmente, afrontadas e que justificam a interposição de um recurso especial”.
“Nesse sentido há que se reconhecer que tais mudanças mudariam radicalmente o curso de inúmeros processos no âmbito de diferentes campos do direito e que têm desembocado no STJ, a despeito de sua irrelevância, quanto à interposição de recurso especial.”
Mas isso não resolve o problema, aponta o advogado Lenio Streck. “Assumir as sugestões da OAB para delimitar critérios de relevância funciona como uma espécie de redução de danos. Todavia, o problema persiste. Haverá relevância automática e relevância subjetiva. Subsiste o problema central: a estrutura dos recursos no Brasil.”
O problema, já abordado por Streck, é que ainda não foi resolvido o problema de diferenciar os casos que exigem reexame de prova dos que apontam erro jurídico no exame das provas — e que, assim, demandariam a intervenção do tribunal superior. A esse problema, acrescenta-se um novo: agora os próprios ministros é que vão decidir o que é relevante ou não, por um quórum de dois terços.
Para a defensora pública no Rio de Janeiro, Cintia Guedes, o gargalo até o STJ fica cada vez mais apertado. “O tribunal já não admite o instrumento par questionar aplicação de jurisprudência, que seria a reclamação, e se exime da responsabilidade de fiscalizar o uso dos precedentes. Se esses problemas fossem resolvidos, o tribunal já seria desafogado, sem precisar barrar o acesso dos mais vulneráveis”, opina.
Para ela, se a aplicação da jurisprudência já é uma questão de “sorte” atualmente, o que a PEC pode fazer é oficializar o “REsp lotérico”: vale o que decidirem os ministros, sem meios de controle e de forma subjetiva.
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PEC 10/2017
Com informações da Conjur