Sempre que uma pessoa inocente é acusada e condenada por um crime que não cometeu, ocorre uma dupla injustiça: a penalização da inocente e a impunidade da pessoa culpada. E as falhas no reconhecimento pessoal em processos criminais se incluem entre os principais fatores que concorrem para que esse tipo de injustiça seja recorrente nas prisões brasileiras.
Em estudo recente realizado em 10 estados, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DP-RJ) apurou que 60% dos casos de reconhecimento fotográfico equivocado em sede policial implicaram na decretação da prisão preventiva. O tempo médio dessas prisões foi de 281 dias – aproximadamente 9 meses.
O levantamento também revelou que, em 83% dos casos de reconhecimento equivocado, as pessoas apontadas eram negras. O levantamento conclui que o reconhecimento pessoal em processos criminais é marcado pela seletividade do sistema penal e pelo racismo estrutural que impera no país.
O tema estimulou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a agir para superar esses desafios. O grupo de trabalho instituído no dia 31 de agosto vai traçar protocolos para evitar a condenação de pessoas inocentes. Constituído por 26 especialistas – representantes do Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da segurança pública, da advocacia e de outras instituições -, o grupo vai realizar estudos e elaborar proposta de regulamentação de diretrizes e procedimentos para o reconhecimento pessoal em processos criminais.
A coordenação dos trabalhos caberá ao ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Rogerio Schietti Machado Cruz, que avalia que os procedimentos para o reconhecimento pessoal em processos criminais, determinados pelo Código de Processo Penal (CPP), não são seguidos com rigor.
Ele aponta que o CPP estabelece que a testemunha deve, antes de tudo, fornecer as características da pessoa que será reconhecida. Em seguida, ela deve ser levada a um local onde a pessoa suspeita estará ao lado de outras, se possível parecidas. E ali ela deve apontar a pessoa que é a suposta autora do fato.
“Na prática, o que se observava é que a pessoa não descreve antes, é levada a um local onde só está o suspeito para ser reconhecido. E esse suposto autor é praticamente indicado pela autoridade policial, que pergunta se é aquele indivíduo”, afirma. O ministro também cita casos de reconhecimentos em que uma pessoa negra é colocada entre pessoas brancas e de reconhecimentos fotográficos com o retrato do suspeito enviado por e-mail para a vítima, o que é uma prática indutora.
Schietti destaca que o Poder Judiciário percebeu que é elevado o número de pessoas que estão sendo condenadas apenas com base nessas provas. “Posteriormente, constatou-se, em revisões criminais, que cerca de 2/3 dos casos continham erros judiciais.”
Jurisprudência
Responsável pelo julgamento de um dos casos emblemáticos (HC nº 598.886 – SC) de revisão criminal em caso de reconhecimento pessoal, Schietti explica que o STJ resolveu ser literal na interpretação da lei e estabeleceu jurisprudência. No caso específico do HC, o cidadão foi condenado a 5 anos e 4 meses de prisão com base, exclusivamente, em reconhecimento fotográfico extrajudicial realizado pelas vítimas.
As vítimas indicaram que o autor praticou o assalto encapuzado e somente com os olhos descobertos e que ele teria altura de 1,70 m. O condenado, porém, possui 1,95 m de altura, 25 centímetros a mais do que o apontado pelas vítimas.
Para o ministro, se o reconhecimento não for feito de acordo com a lei, ele é inválido. “Não se pode sustentar uma condenação a menos que exista outras provas. Nós decidimos também que o reconhecimento fotográfico é mais falho ainda, porque ele quase sempre é feito a partir de fotos de prontuários policiais de catálogo de delegacias, que têm os suspeitos de sempre.”
Segundo o magistrado, o reconhecimento em que a vítima é chamada a olhar catálogos para ver se identifica alguém – e aponta quando encontra uma pessoa parecida -, cria uma instabilidade. “É uma insegurança muito grande, uma falibilidade da prova com reflexos traumáticos e definitivos, porque é a liberdade de alguém que acaba suprimida.”
Falhas
As falhas no reconhecimento pessoal em processos criminais, porém, não se restringem ao Brasil. Levantamento realizado pelo Innocence Project nos Estados Unidos indica que os reconhecimentos pessoais equivocados são a causa dos erros judiciais em 69% dos casos em que houve a revisão das condenações, após realização do exame de DNA.
Schietti ressalta que o Brasil tem uma tradição de provas muito pouco exigentes quanto ao que é classificado como standard probatório. “Nos contentamos, por exemplo, com reconhecimento com provas orais que poderiam ser confirmadas por uma perícia. E não exigimos que seja feita a perícia. O objetivo do grupo de trabalho é reavaliar essas questões.”
De acordo com ele, é preciso considerar que existem fatores psicológicos e emocionais que tornam essas provas questionáveis, do ponto de vista científico. Uma pessoa que foi vítima de um roubo está numa permanente tensão – em algumas situações estão até com medo de morrer.
“Há casos em que ela pode estar com uma arma apontada para a cabeça e, geralmente, ela não pode ficar visualizando o rosto do réu, que manda ela olhar para outro lado, às vezes ele está de capuz ou está com algum disfarce.”
As ações criminosas, observa, precisam ter um processo de identificação rápido. “Semanas, ou até meses depois, essa pessoa é chamada numa delegacia para apontar alguém como tendo sido autor do fato. Isso é algo muito subjetivo, pois há interferência de emoções, há interferência da memória, que é falível. Além de induções. Tudo isso torna essa prova absolutamente frágil. É cientificamente frágil para sustentar uma condenação.”
O ministro também aponta que há uma tendência do ser humano em validar algum ato anterior, o que é explicado pela psicologia. “Se uma vítima aponta um suspeito na investigação, ela tende a confirmar, em juízo, que reconheceu aquela pessoa. O mesmo ocorre com o policial que efetua uma prisão. A tendência é manter a história de que ele prendeu naquelas circunstâncias que inicialmente narrou.”
Ações
Um dos produtos que será desenvolvido pelo grupo de trabalho é um Protocolo de Boas Práticas de Reconhecimento, com orientações sobre o tema. Também é objetivo criar ferramentas que estimulem as escolas da magistratura a desenvolverem ações de capacitação e aperfeiçoamento sobre reconhecimento pessoal. E especialistas serão convidados para dividir experiências e conhecimento, permitindo desenvolver novas rotinas e procedimentos que são mais adequados.
Schietti destaca que, apesar de a atuação normativa do colegiado ser endereçada à magistratura, acabará refletindo no Ministério Público e nas polícias, que se guiarão pelos mesmos princípios.
“Quem avalia a prova é o juiz e é importante que ele possa ter a segurança que esse reconhecimento foi feito de acordo com as diretrizes que nós iremos estabelecer”, explica. Ele ressalta que os estudos vão esclarecer o que o CPP já prevê. “Precisamos de uma normatização cogente, de diretrizes que sirvam de orientação para todos que operam no sistema de Justiça Criminal.”
Com informações do CNJ