O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou, por unanimidade, uma nota técnica em defesa do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. O documento, a ser enviado à Câmara dos Deputados, responde a questionamentos levantados no Projeto de Decreto Legislativo (PDL) n. 89/2023, que tramita na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania.
A proposta legislativa busca sustar a aplicação da Resolução CNJ nº 492/2023, que estabeleceu diretrizes para julgamentos com perspectiva de gênero no Poder Judiciário brasileiro. A relatora do PDL argumenta que a norma do Conselho possui conteúdo de natureza política, e, portanto, a deliberação sobre a matéria deveria competir ao Poder Legislativo.
A Nota Técnica 0004651-31.2025.2.00.0000, relatada pela conselheira Renata Gil e apreciada na 1ª Reunião Extraordinária Virtual de 2025, reúne subsídios jurídicos, institucionais e normativos de direitos humanos em resposta à proposta legislativa.
O Protocolo, aprovado pelo Plenário do Conselho em março de 2023, é um reconhecimento à existência de fatores históricos e sociais que, direta ou indiretamente, ainda podem influenciar decisões judiciais em diversas áreas do Direito. “Tais fatores, por vezes internalizados na cultura institucional, podem contribuir para a reprodução de práticas judiciais que não considerem, de forma adequada, as diferentes situações de vulnerabilidade vivenciadas por mulheres, comprometendo a plena efetivação do princípio da igualdade”, destaca a nota.
CNJ E DEVER JURÍDICO
De acordo com a relatora, a Constituição Federal confere ao CNJ competência normativa para expedir atos voltados ao aprimoramento da Justiça. A tentativa de sustação legislativa, por sua vez, configura ingerência indevida sobre a organização interna do Poder Judiciário e ameaça a implementação de políticas públicas essenciais à promoção da igualdade de gênero e ao cumprimento de obrigações internacionais assumidas pelo Brasil.
Como pontua a nota técnica, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero foi elaborado por um grupo de trabalho plural e interinstitucional e contou com o apoio da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam).
A relatora ressalta que “o julgamento com perspectiva de gênero não constitui concessão ideológica, nem exceção hermenêutica: trata-se de um dever jurídico e institucional, alicerçado na Constituição Federal, nos tratados internacionais de direitos humanos e na jurisprudência protetiva de diversos sistemas regionais”.
Além disso, a nota técnica destaca que o protocolo é um dever jurídico decorrente da Constituição Federal, da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) e dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, especialmente após a condenação do país no caso Márcia Barbosa de Souza vs. Brasil. Em dezembro de 2021, a Corte IDH publicou a sentença que condenou o Brasil pelo feminicídio de Márcia Barbosa de Souza, morta em 1998, exigindo que o país adotasse um protocolo de gênero para guiar os julgamentos.
A nota técnica também responde à questão levantada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados sobre a competência do CNJ para elaborar o normativo. O documento aprovado informa que essa competência está “expressamente delineada no texto da Constituição da República”, que prevê a expedição de atos normativos voltados ao aperfeiçoamento do funcionamento do sistema judicial brasileiro. A relatora destacou ainda que a resolução não impõe decisões ou limita a independência judicial, “atuando como protocolo metodológico que visa qualificar a jurisdição com fundamento na igualdade material, na dignidade humana e no combate à discriminação”.
JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO
Concebido em três partes, o Protocolo traz informações teóricas sobre questões de gênero; um guia para a magistratura, apontando o passo a passo processual; e ainda apresenta questões de gênero específicas dos ramos da Justiça, com destaque para os temas transversais.
Aprovada pelo CNJ em 2022, a Recomendação n. 128 tratou da adoção do protocolo no âmbito do Poder Judiciário nacional. Posteriormente, a Resolução CNJ n. 429/2023 estabeleceu a obrigatoriedade das diretrizes da norma em âmbito nacional. Nesse sentido, os tribunais brasileiros passaram a levar em conta, em julgamentos, as especificidades das pessoas envolvidas, a fim de evitar preconceito e discriminação por gênero e outras características. O normativo também instituiu a obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas em temas como direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional.