O domingo da vergonha exibiu o ataque contra prédios públicos que simbolizam as mais sagradas instituições da República. As cenas escatológicas de vandalismo deviam horrorizar o país e conduzir a uma unânime defesa do Estado Democrático de Direito. Isso não aconteceu.
As pesquisas de opinião revelam que, depois de tudo, depois do episódio que envergonha o país perante o mundo, 35% ainda apoiam uma intervenção militar. Não é o suficiente para fabricar uma ruptura sob a mão armada de setores das Forças Armadas, mas pode erodir até o último torrão de terra um governo sobre o qual se escora a continuidade da democracia.
Há verdades inconvenientes na raiz desse espanto. A democracia produziu no mundo todo filhos inconsoláveis e outros ingratos. De um lado, aqueles a quem a democracia sob regime de produção capitalista não foi capaz de alimentar, dar moradia digna, educação e segurança. De outro, aqueles que vivem na abundância capitalista, mas se ressentem porque pensam “pagar a conta” sozinhos.
A vitória de Lula, um dos últimos estadistas no planeta capazes de empolgar em favor de ideais democráticos, ainda não alterou esse estado de coisas. E, se não refrear seu desconforto na relação com as Forças Armadas, talvez tudo piore.
Lula é um produto das lutas sociais que se opuseram ao regime militar. Emerge e viceja com a abertura democrática, sob o gabarito de generais como Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, que a extrema direita considera infiltrados. Lula é um filho da redemocratização que sepultou as ambições políticas de oficiais que gravitavam no entorno de Sylvio Frota, símbolo da linha dura, removido do poder em outubro de 1977 a fim de que se pavimentassem os caminhos para a Nova República.
A geração perdida de Sylvio Frota voltou no útero do bolsonarismo, um populismo que a linha dura podia chamar de seu. Bolsonaro foi eleito democraticamente e, como outros tantos representantes da direita alternativa, do non sense que anima as massas, quase acaba com a democracia no Brasil.
Bolsonaro ampliou a participação de militares em cargos de confiança e empoderou policiais sob a afirmação de uma maçaroca ética que fala com grande parte da população brasileira. Fecundou, gestou e botou o ovo da serpente que eclodiu no domingo da vergonha. E que gerou um monstro que se alimenta da ruptura e do distanciamento entre a política tradicional e parte do povo.
Não haverá solução sem que o presidente dialogue com a cúpula das Forças Armadas, conservadora e insatisfeita com o resultado das urnas. É como se Mozart estivesse escrevendo uma sinfonia e alguém ligasse uma britadeira em frente à sua casa. Essa tarefa não pode ser conferida a terceiros. Só Lula, um gênio político, pode lidar com essa situação.
No mais, será necessário olhar para a democracia e suas mazelas. É preciso buscar uma regulação fina para impedir interferências indevidas na formação e expressão da vontade popular e, quando não for possível, compassá-la aos legítimos interesses públicos, criar estruturas perenes de planejamento e construção de estratégias estatais, que não podem variar ao sabor das mudanças de governo, assim como estruturas de Estado de salvaguarda da democracia, a exemplo do que fez a Alemanha.
As democracias devem ser capazes de competir em eficiência com regimes autocráticos que floresceram em um regime de mercado sob coordenação estatal. E ao fazê-lo, devem partilhar o produto do sucesso econômico de modo equânime, para que não haja uma multidão de perdedores e pouquíssimos vencedores.
Mas tudo isso sob a certeza de que não é possível acomodar todos os desejos. Assim como nas melhores famílias, sempre haverá filhos inconsoláveis, para os quais só resta um bom corretivo da lei.
Walfrido Warde é advogado e presidente do IREE (Instituto para a Reforma das Relações entre Estado e Empresa).
Rafael Valim é doutor e mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP, onde lecionou de 2015 a 2018, e diretor do IREE.
*Artigo originalmente publicado na Folha de São Paulo, em 11 de janeiro.