As bibliotecas, na junção, ainda que desorganizada, dos seus livros, contêm mistérios. Sempre estão aptas a surpreender os seus organizadores. É até mesmo comum, por força de um esquecimento natural, esvair-se com o tempo a percepção de escritos, muitos dos quais, imperceptíveis, remanescem nos seus escaninhos e esconderijos.
Recentemente, numa passagem pelo gabinete de trabalho, vazio de calor humano por injunções da pandemia, pude rever, num golpe de pura sorte, “Presunções e indícios em matéria penal (direito aplicado)”, de autoria de João Medeiros Filho, publicado pela Editora Universitária, Natal – RN, no já distante ano de 1980.
Para o desenvolvimento do texto, partiu o autor de uma experiência concreta, relacionada com a verificação de uma suposta coautoria quando da prática de um latrocínio que, em meados da década de 1970, agitou a curiosidade dos veículos de informação, então materializados pelo saudoso meio impresso, abalando, sobretudo, a tranquilidade da pacata sociedade natalense.
Inconformado com a percepção da sentença que, ao reconhecer a coautoria, baseou-se, praticamente, na circunstância de que um dos acusados se encontrava nas proximidades do local do delito, o autor argumentou com a presença, apenas e somente, de indícios, tornando, portando, incabível uma conclusão desfavorável ao réu.
Após exposição lastreada nas lições de doutrinadores nacionais e estrangeiros, João Medeiros Filho delineou a substância do que se há de compreender por livre convencimento do juiz, para, distinguindo-o da ampla liberdade valorativa do jurado, acentuar: “Assim, estabelecida a competência do Juiz singular para o julgamento do latrocínio, deve o magistrado ser rigoroso na apreciação das provas, muito mais do que o colegiado. O Júri, constituído de elementos do povo, deixa-se levar pelas emoções ou por certas aparências, podendo julgar ultra vires probae”(p. 33).
Prosseguindo, não olvida o autor em chamar atenção para a Exposição de Motivos do Código de Processo Penal de 1940, quando enuncia: “Livre convencimento não quer dizer puro “capricho de opinião ou mero arbítrio na apreciação das provas” (p. 33).
Num complemento, capaz de justificar o título deste artigo, outra surpresa se impôs, evidenciando as artimanhas do acaso, qual seja a elaboração do prefácio por José Augusto Delgado, então Juiz Federal com atuação na Seção Judiciária do Rio do Grande do Norte.
O prefaciador, ao depois de frisar, com lastro em Gil A. Hernandes (Metodologia de la Ciencia del Derecho, vol. I, Madri, 1971, p. 186), que o verdadeiro jurista vai além de um receptor mecânico e classificador dos dados que lhe são fornecidos pelo jurídico, apontou: “Por tal motivo é que a atividade científica que desenvolve o mestre João Medeiros Filho, no campo do direito, é revestida da capacidade de criar continuamente momentos de cristalização formal na ordem jurídica, descobrindo o conteúdo e a extensão da normas positiva”. (…) Os princípios que norteiam o desenrolar da fundamentação atestam a preocupação renovada do cientista com a verdade que representa a sentença, pelo que não pode ser prolatada sem ser com base em prova certa, determinada e estreme de dúvidas”.
O debate, com certeza, continuará na esfera celestial.
Edilson Nobre é magistrado, presidente do TRF-5 e professor