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OPINIÃO

A advocacia como símbolo da esperança

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Desafiada a escrever uma crônica em homenagem ao 11 de agosto, pensei em falar sobre alguém que pudesse servir de inspiração para a nossa profissão e que revelasse a força simbólica do papel do advogado num Estado Democrático de Direito. Em tempos conturbados — quando até o presidente do Conselho Federal da OAB(CFOAB) é ameaçado com sanções por um estado estrangeiro, por defender a soberania brasileira e a autonomia das instituições da República -, vou falar sobre Esperança Garcia como um marco jurídico e social.

Boucher D’Argis dizia que o ofício do advogado é mais antigo que o próprio título. E que, no curso dessa longa história, o nosso traço comum, em qualquer sociedade, é a liberdade. E não há liberdade, muito menos democracia, se o advogado é impedido de se manifestar e de agir livremente.

Hoje, somos mais de um milhão de profissionais, segundo dados do CFOAB, o que revela um cenário cada vez mais competitivo, que exige uma formação acadêmica plural e robusta para enfrentar as novas demandas. Por outro lado, a advocacia está empobrecida, e os problemas se multiplicam, sobretudo para os chamados advogados “de balcão” e os que atuam fora dos grandes centros urbanos.

Essa precarização não decorre apenas da lei de oferta e demanda. Ela também é fruto do leilão inverso imposto pela arquitetura digital de algumas plataformas jurídicas. Contudo, esse processo de desvalorização da advocacia não começou com a plataformização, ele se arrasta há mais de uma década.

São tempos difíceis nos quais todas as instituições jurídicas, especialmente a OAB e o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), têm a obrigação de combater a “banalidade do mal”, a fim de preservar a democracia. Isso exige atuação mais humanizada, valorizando os direitos humanos no Direito e na Justiça, e buscando o bem-estar e a felicidade das pessoas.

Daí que revisitar a história de Esperança Garcia é essencial para reavaliarmos os silenciamentos que marcaram o Direito brasileiro. Ela rompeu com a ideia de passividade atribuída aos escravizados e mostrou resistência, consciência jurídica e força. Como mulher negra, seu protagonismo desafia os cânones historiográficos e nos convida a construir um Direito mais plural e uma advocacia cada vez mais consciente do seu papel. 

Esperança Garcia foi uma mulher negra e escravizada que, em 1770, escreveu uma petição ao governador da Capitania do Piauí — documento hoje reconhecido como uma das primeiras manifestações jurídicas do Brasil. Nela, Esperança reivindicava assistência religiosa, o direito de viver com seus filhos e o fim dos maus-tratos. Com apenas 19 anos, estruturou sua carta como uma petição formal: identificou os envolvidos, relatou os fatos e fundamentou seu pedido com base na ética e na fé. A estrutura, embora rudimentar, revelou domínio da linguagem jurídica.

A força simbólica da carta de Esperança reverberou institucionalmente nas últimas décadas. Na nossa Casa de Montezuma (IAB) criamos a Medalha Esperança Garcia, em homenagem às profissionais que atuam na defesa dos direitos humanos e da equidade racial.

Conheci pessoalmente os documentos históricos sobre Esperança em uma visita institucional ao Piauí, representando o IAB na fundação de uma subsede da instituição naquele estado. A medalha, desenhada por Clauberto Antonio dos Santos, renomado artista plástico piauiense, estabelece um elo entre a advocacia contemporânea e as raízes não reconhecidas do Direito brasileiro. Generosamente, o artista doou ao IAB a matriz da imagem, agora parte de um conjunto simbólico valioso.

Ainda em sua homenagem, menciono a inauguração de um busto de bronze no Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro — gesto que projeta Esperança como referência para as mulheres trabalhadoras e reforça o papel da Justiça do Trabalho como Justiça Social, merecendo, portanto, a defesa de todos os que nela atuam.

A instalação do busto na entrada do TRT da 1ª Região é também o reconhecimento da importância do trabalho da advocacia, além de reforçar a relevância social da Justiça do Trabalho, mesmo diante das tentativas de esvaziar sua competência jurisdicional e das propostas para sua extinção, que infelizmente não são novidades.

O Instituto Esperança Garcia e o Memorial que leva seu nome são frutos de ativismo e de pesquisa histórica, mantendo viva sua trajetória e promovendo a formação antirracista e feminista. Ao reconhecê-la como a primeira advogada do Brasil, reivindicamos uma nova epistemologia jurídica, que nasce das margens e valoriza a potência da insurgência.

Hoje, transformo esta homenagem em instrumento de resistência e luta de advogados e advogadas. Esperança não escreveu apenas uma carta. Ela escreveu um futuro. É sobre esse futuro que precisamos falar: pensar sobre um Direito que se abra à pluralidade de vozes e uma advocacia que não se cale diante das injustiças, que não tema expressar seu posicionamento, independentemente das ameaças.

O compromisso das instituições jurídicas, especialmente no mês de agosto, deve ser o de endossar essa carta histórica — lembrando as graves violações aos direitos civis, sociais e políticos ocorridas durante a ditadura. Informação e esclarecimento, segundo Kant, são instrumentos para impedir que os inescrupulosos se aproveitem da ignorância e da liberdade para desrespeitar as regras do jogo democrático.

As instituições jurídicas e as entidades representativas da advocacia têm a mastodôntica missão de garantir que os passos daqueles que vieram antes de nós sejam honrados. E a nós, cabe mostrar que a luta pelo restabelecimento do Estado Democrático não foi em vão. A advocacia sempre foi — e continuará sendo — resistência: a última trincheira contra toda forma de despotismo.

Rita Cortez é advogada trabalhista, presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e conselheira federal da OAB

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