A última versão entregue da proposta da reforma tributária (Proposta de Emenda à Constituição nº 45/2019) aos senhores e senhoras deputados federais foi aprovada, momentos depois, por ampla maioria na Câmara dos Deputados no último 06 de julho. A primeira consideração objetiva é que os parlamentares, em sua imensa maioria, votaram contra ou a favor de um texto complexo que não pode ter sido lido e, muito menos, debatido em sua última versão, sem falar que um tema tão relevante não foi tratado detidamente pelas comissões temáticas na atual legislatura.
É necessário dizer que é falso afirmar que o projeto aprovado vem sendo discutido há trinta e cinco anos, como foi dito por muitas pessoas, inclusive alguns parlamentares. O tema reforma tributária, com inúmeras versões, sim, vem sendo debatido há muitos anos e é algo de fato necessário e importante, pois pode contribuir para reduzir distorções e fomentar o desenvolvimento nacional.
Portanto, por si só, foi preocupante acompanhar nos últimos dias o processo legislativo ocorrer de forma a impedir, na prática, que os parlamentares pudessem realizar o papel para os quais foram eleitos. Ora, a leitura, a interpretação e o debate do projeto de lei – no caso aqui tratado de emenda à constituição – é exatamente o objeto de análise de quem legisla e dos juristas. Assim, não se permitiu, igualmente, a sociedade poder se debruçar sobre algo que, em boa medida, muda a estrutura do estado brasileiro da forma que foi estabelecido em 1988 pela Constituição.
Outro ponto é que se estabeleceu no Brasil uma falsa premissa, segundo a qual a PEC 45/2019 seria o modelo próximo do ideal de reforma tributária e quem se posiciona de maneira contrária ou é oposição ao atual governo, ou contra o desenvolvimento nacional ou quer manter algum privilégio, entre outras questões. O fato é que existem inúmeras pessoas que se não enquadram em nenhuma das hipóteses acima e que, sim, são favoráveis a uma mudança estrutural do Sistema Tributário Nacional, mas que discordam total ou parcialmente da proposta apresentada. Infelizmente, a PEC 45/2019 poderá ter o efeito contrário a expectativa criada pela maioria da sociedade.
É verdade que a PEC 45/2019 inova positivamente em alguns aspectos, especialmente em relação aos tributos de competência da União Federal. A inovação para se criar uma contribuição sobre bens e serviços, revogando-se o PIS e a Cofins, inclusive os incidentes sobre a importação, contribui para a simplificação do sistema tributário. Outro aspecto positivo seria o de estabelecer de forma explícita os princípios da justiça tributária, da transparência e da simplicidade no texto constitucional. Há outros aspectos que merecem destaque, por exemplo em relação ao imposto causa mortis e doção, ao estabelecer que este deverá ser progressivo, o que vai ao encontro do princípio da capacidade contributiva.
Por outro lado, a PEC 45/2019 acaba por contrariar o sistema federativo tripartite previsto pelo legislador constituinte originário (art. 18 da CF), além de, provavelmente, levar ao aumento expressivo da carga tributária que irá ocorrer para diversos setores, a exemplo das sociedades de profissão regulamentada, sem contar que em pouco contribui para a redução das desigualdades sociais e regionais, conforme prescreve os artigos 3º e 43 da CF. Neste último aspecto, a proposta lembra mais uma carta de boas intenções do que propriamente um avanço.
Tema pouco tratado, a PEC 45/2019 cria um novo imposto que incidiria sobre os produtos considerados prejudicais a saúde e ao meio ambiente, esquecendo que já temos uma carga tributária elevada, em torno de 33% do PIB. Somos, contra a criação de um novo imposto, especialmente quando traz os velhos problemas de ter o mesmo fato gerador e base de cálculo de outros tributos. Trata-se, portanto, de um evidente retrocesso.
Inegavelmente, o que causa maior preocupação é a intenção de revogar o ICMS, o principal imposto dos estados e DF e o ISS, o principal imposto dos municípios com maior atividade econômica, também cobrado pelo DF. Entendemos que ambos os impostos são alicerces do pacto federativo, uma vez que a autonomia financeira e administrativa dos estados e municípios não pode ser obtida na ausência da plena da competência tributária, nos termos conferidos pelo legislador constituinte original.
A República Federativa do Brasil garante a autonomia dos entes subnacionais, conferindo-lhes a capacidade de autogoverno. A extinção do ICMS e do ISS – ao contrário do que se quer transparecer – não é mera alteração constitucional, onde as competências dos estados e municípios estariam preservadas.
A capacidade de gerir os seus principais impostos, nos termos conferidos pelo constituinte original, é garantia da autonomia dos entes subnacionais, pois não há como fazê-lo sem renda próprias.
Por isso, a criação do IBS (imposto sobre bens e serviços) que serviria para unificar o ISS e o ICMS acaba por contrariar o pacto federativo, cláusula pétrea da Constituição, especialmente quando estabelece que um Conselho Federativo irá administrar e distribuir o produto da arrecadação. Ora, os estados e principalmente os municípios certamente perderão muito da sua capacidade de se autogovernar, o que por si só afronta toda a já longa tradição republicana e federativa brasileira.
Outra preocupação é que há sérios riscos de um aumento expressivo da carga tributária para os prestadores de serviço, especialmente os de profissão regulamentada, pois ao se somar as alíquotas especuladas dos eventuais CBS e IBS, que deverá sair de cerca de 16% da receita bruta para mais de 34%, mesmo com o direito a não-cumulatividade.
Com base nessas breves considerações, se for simplesmente para ser contra ou a favor, é necessário se posicionar claramente de maneira contrária a PEC 45/2019, da forma que foi aprovada na Câmara. Ao Senado Federal – que tem o papel constitucional de representar os Estados e o Distrito Federal – caberá analisar os seus diversos aspectos, especialmente as que retiram o ISS e o ICMS das competências das unidades federativas, conforme tratado.
O que espera e exige, ao menos parcela relevante da sociedade brasileira, é que o Senado da República, cumpra o seu dever constitucional e debata amplamente acerca dos diversos aspectos desse projeto de reforma tributária, aqui brevemente mencionados. Não se trata simplesmente de um tema político do governo ou da oposição, mas da formatação do nosso estado federal, que foi forjado na autonomia e na competência de todas as pessoas políticas.
Gustavo Ventura, presidente da Federação Nacional dos Institutos dos Advogados do Brasil (FENIA) e do Instituto dos Advogados de Pernambuco (IAP).