Encerra-se 2022. A ninguém restou indiferente este período. Os fatos do presente interpelam o espírito de autoridade do qual ordinariamente deveria se revestir o direito, uma vez que o intento de diluir as instituições da sociedade e do Estado, especialmente a fim de amesquinhar o Judiciário, tem se revelado persistente. E não irá cessar. O amanhã entremeia sinais de esperança e sintomas de elevada preocupação.
É certo que compromissos significativos foram assumidos para dar efetividade àquilo que a Constituição de 1988 edificou. A busca do justo em cada processo ou diante de casos concretos traduziu-se num desafio que a força obrigatória dos precedentes e a estabilidade da jurisprudência intentam pavimentar na própria segurança jurídica que procuram.
Nada obstante, duas ordens de crises emergiram nessas mais de três décadas de democracia: uma, quanto aos limites e possibilidades da atuação da magistratura constitucional; outra, concernente ao próprio conceito de direito, cuja ideia, na conhecida tríade de Gustav Radbruch, se compõe de justiça, utilidade e segurança. Sem um ou mais desses pilares quebra-se a base de sustentação inerente à legitimidade institucional. Solapar o Judiciário, por isso mesmo, é atentar contra o Estado de Direito.
Assim foi na Alemanha de Radbruch, a qual, depois de 1945, produziu a supremacia da justiça substancial diante de ordens injustas ou de leis escritas incompatíveis com a igualdade.
O verdadeiro fundamento do Estado de Direito é a autonomia do próprio direito garantida pelo Poder Judiciário em sentido amplo (compreendendo todas as funções essenciais à justiça), porquanto somente assim, nas democracias, o poder do Estado se submete ao direito.
Não há dúvida sobre o que a Constituição da República brasileira inscreveu como o modelo da separação dos Poderes. É a doutrina de Montesquieu sobre os três protagonistas do poder estatal: legislador, administrador, julgador.
O Brasil precisa aprender com seu passado para encontrar um futuro digno e habitável, livre, justo e solidário. Isso não se dará atentando contra o Poder Judiciário, nem restringindo liberdades. Ao Legislativo o que lhe é próprio da espacialidade da política e da representação da soberania popular; ao Executivo o que lhe é da administração e seus afazeres de gestão e execução; e ao Judiciário o direito nos limites constitucionais e legais.
Ao fim deste longo ano de 2022, no qual resiliência, firmeza e serenidade se mostram irmãs siamesas da independência, o porvir que se avizinha não é menos preocupante. Os reptos para a justiça, o Estado de Direito e o próprio Judiciário não se colocam somente por arroubos autoritários, eis que podem advir embalados em pacotes que, no engodo, estiolam a essência da magistratura. Independência e harmonia não podem passar por filtragens ilegítimas, quer de populismos autoritários, quer de interesses de ocasião.
Recentemente, poucos dias faz, o conhecido dicionário norte-americano Merriam-Webster elegeu “gaslighting” como a palavra do ano: “o ato ou prática de enganar alguém”; como se vê, elegeu-se o sentido da mentira, da manipulação, do abuso e da violência de corromper a percepção que alguém tem sobre si e sobre o mundo.
Para 2023 proporia que a escolha, no Brasil ao menos, recaísse sobre a palavra “confiança”. Confiança, aliás, para aquele mesmo dicionário Merriam-Webster, significa o que tem relação com o certo e com a verdade. Significa entender, acreditar e aceitar.
Mesmo nos dissensos, nas controvérsias, é fundamental um processo e um procedimento que gere confiança. E como isso se produz? Por meio do entender, do acreditar e do aceitar. É que, no direito, assim como na ética existencial, há diferença entre o certo e o errado, entre a verdade e a mentira.
A confiança deve criar a ponte para 2023, ou se abrirão as valas de um abismo. A diluição da autoridade do direito pode se transformar numa das grandes tragédias de nossa época. Sem justiça, utilidade e segurança, o colapso institucional ruirá a legitimidade do Judiciário.
Queira o porvir assegurar que a autonomia do direito se mantenha preservada como núcleo da conservação do próprio Estado de Direito no Brasil. Respeito integral ao Poder Judiciário e às prerrogativas da magistratura são condições de possibilidade desse objetivo fundamental.
Edson Fachin é ministro do Supremo Tribunal Federal
*Artigo originalmente publicado na Folha de São Paulo