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Eleitor não é cordeiro diante de ataques de lobos às urnas

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As fábulas constituem um gênero literário, de cunho popular, disseminado de boca a boca por diferentes povos desde a mais remota antiguidade. Elas têm como personagens animais com características humanas, cujas ações refletem os defeitos e as virtudes das pessoas. Desde a origem, foram empregadas para criticar ricos e poderosos por meio de sátiras e alegorias, culminando, usualmente, com uma frase que encerra uma lição de moral.

Atribui-se a paternidade dessas narrativas ao escritor Esopo, que viveu na Grécia Antiga (620 a. C. a 564 a. C. ). Sua vasta obra serviu de inspiração, além de outros, ao ensaísta romano Fedro (20 a. C. a 50 d. C.) e ao literato francês La Fontaine (1621-1695), que reescreveram, com traços estilísticos próprios, algumas das historietas do autor grego, dentre as quais uma das mais famosas, intitulada “O Lobo e o Cordeiro”, grosso modo abaixo reproduzida.

Em um pequeno córrego, bebia água um lobo faminto, quando se aproximou mais abaixo um cordeiro, que também começou a beber.

Com um olhar ameaçador e dentes arreganhados, o lobo grunhiu: “Como você ousa turvar a água onde bebo?”

O cordeiro, humildemente, redarguiu. “Eu estou abaixo da correnteza e, por isso, não poderia sujar a sua água.” O lobo, enraivecido, rosnou. “Seja como for, sei que você andou falando mal de mim no ano passado: ‘ O cordeiro, tremendo de medo, retrucou: ‘Não é possível, no ano passado, eu ainda não tinha nascido.”

O lobo, pego de surpresa, replicou. “Se não foi você, foi seu irmão, o que dá no mesmo.” Apavorado, o cordeiro defendeu-se, mais uma vez, retorquindo: “Eu não tenho irmão, sou filho único”. Já salivando, o lobo rezingou: “Então, foi alguém que você conhece, um outro cordeiro, um pastor ou um dos cães que cuidam do rebanho”. E, saltando sobre ele, devorou-o. Moral da história: quem pretende usar a força não se sensibiliza com nenhum argumento.

Esta velha fábula remete-nos à inusitada situação vivida atualmente no Brasil, na qual agentes governamentais, secundados por integrantes de estamentos armados — ao que se sabe, minoritários — colocam em dúvida, mediante alegações completamente infundadas, a segurança das urnas eletrônicas, que há cerca de 25 anos captam e computam, sem maiores contestações, os votos dos eleitores brasileiros.

Quem acompanha essa polêmica, no mínimo farsesca, constata estupefato que, a cada refutação ofertada por juristas e técnicos em informática, os detratores de nosso processo eleitoral, respeitado pela grande maioria dos cidadãos brasileiros e admirado pela comunidade internacional, articulam renovadas cavilações para solapar a credibilidade do pleito que se avizinha, com a ameaça velada de rejeitar o seu resultado, caso os candidatos pelos quais externam despudorada preferência não se sagrem vencedores.

Ocorre que, desta feita, contrariando o epílogo da parábola esopiana, os lobos não levarão a melhor, por mais que elaborem sofismas e exibam as presas, pois os hoje mais de 150 milhões de brasileiros aptos a votar — os quais de cordeiros não têm nada —, escaldados pelos  incontáveis retrocessos institucionais que maculam acrônica política nacional, certamente haverão de fazer prevalecer a sua vontade soberana.

A moral dessa nova narrativa talvez possa ser sintetizada na sempre oportuna advertência de Ulysses Guimarães: “Nosso povo cresceu, assumiu o seu destino, juntou-se em multidões, reclamou a restauração democrática, a justiça social e a dignidade do Estado”.

Artigo publicado originalmente na Folha de São Paulo, edição deste domingo (24).

Ricardo Lewandowski é ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e professor titular de Teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

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