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Fato do príncipe

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Os conceitos de fato do príncipe são distintos para o direito do trabalho e para o direito administrativo. Os dicionários dedicados ao vocabulário jurídico usualmente os tratam em verbetes distintos[1] ou em itens distintos do mesmo verbete[2]. Não obstante ambos decorram de atos da Administração, para o Direito Administrativo importa o ato que interfira num contrato previamente pactuado entre a Administração Pública, em qualquer das suas esferas, e quem com ela haja contratado.

Embora em essência, cientificamente o factum principis seja motivo de força maior e suas consequências práticas, contra os interesses patronais, sejam as mesmas – o legislador determinou que, no fechamento da empresa ocasionado por ato da autoridade, perdure íntegro, completo, o direito do trabalhador de receber as indenizações, responsabilizando, contudo, a pessoa jurídica de direito público interno que houver dado causa à cessação do serviço pelo seu pagamento [3].

Parte da doutrina preceitua que o artigo 486 da CLT encontra aplicabilidade restrita no campo das relações de trabalho, e merece uma interpretação restritiva quanto ao seu alcance. A premissa de que partem é a de que o ato estatal deve ser norteado pela presença do interesse público e por razões de conveniência e oportunidade e ter o condão de tornar irreversível a continuidade do empreendimento.

Entendem que na hipótese das restrições ocasionadas pela covid-19, o Estado atuou motivado por uma situação completamente imprevisível e que exigia medidas urgentes direcionadas à preservação da vida das pessoas, o que escusa a responsabilização estatal diante da própria inexigibilidade de conduta diversa por parte de Governadores e Prefeitos que agiram em observância a protocolos da OMS, que declarou emergência em saúde pública de importância internacional.

Georgenor de Sousa Franco Filho e Ney Maranhão assentam-se na premissa de que a administração pública teve o dever de agir, para asseverar que ela agiu “escudada não com alicerce no princípio da prevenção, mas da precaução” e concluir “Talvez a situação em debate envolva mais uma questão de nexo causal que de avaliação culposa de ação, eficácia técnica da medida aplicada, discricionaridade do juízo estatal ou ainda licitude da atividade empresarial” [4].

Fundamentando uma linha de raciocínio que inclina-se a refutar a caracterização do fato do príncipe, os referidos juristas referem-se a um trintenário julgado do Tribunal Superior do Trabalho que assevera que “Não há que se falar em factum principis quando a ação do poder público visa resguardar o interesse maior da população, atingido pelo inadimplemento da empresa” [5], muito embora reconheçam que “A propósito, nem se queira encontrar decisão judicial perfeitamente afinada com a realidade presente. Missão impossível, haja vista que a pandemia do coronavírus (covid-19) tem se revelado evento de impacto social, político e econômico verdadeiramente sem precedentes”[6].

Não há, contudo, como concordar com o entendimento assentado no julgado em questão. Como bem observado por Hely Lopes Meirelles:

O fundamento da teoria do fato do príncipe é o mesmo que justifica a indenização do expropriado por utilidade pública ou interesse social, insto é, a Administração não pode causar danos ou prejuízos ao administrados, e muito menos a coletividade de seus contratados, ainda que em benefício da coletividade. Quando isso ocorre, surge a obrigação de indenizar[7].

Em sentido convergente, também reconhecendo que a existência de um interesse público superior a justificar a medida adotada pela Administração Pública e o fato de o fundamento do artigo 486 da Consolidação das Leis do Trabalho ser a assunção, pela via legal, de uma obrigação pelo Estado em decorrência de suas próprias decisões, afirma Mozart Victor Russomano, “O estado democrático, antes de tudo, é um Estado responsável. Essa responsabilidade do Estado, simultaneamente, é moral, política e jurídica”[8] e que “O factum principis, isto é, o ato do Príncipe, simbolicamente, o ato do administrador, chama, portanto, sobre o Estado, os ônus que dele derivam, sempre que o ato atrita com a lei, com o direito individual, com as prerrogativas do cidadão” [9]. E arremata afirmando:

Trazendo, agora, o problema para o campo próprio do direito do trabalho, ainda examinaremos o factum principis em função da responsabilidade que as pessoas jurídicas de direito público interno possam ter, no mundo das relações de direito privado[10].

Quando o Estado (União, Estado-Membro, Município e Autarquia interfere na atividade da empresa, direta ou indiretamente, proibindo o seu funcionamento ou criando condições tais que tornem impossíveis a continuação do serviço, duas hipóteses distintas se apresentam ao observador a) – ou a medida violenta do Estado resulta de dolo ou culpa do empregador, a este cabendo, naturalmente, os prejuízos derivados do fechamento da empresa, inclusive no tocante ao pagamento de indenizações devidas aos trabalhadores dispensados; b) – ou o ato praticado envolve violação de norma ou  de preceito jurídico (legal ou contratual), de modo que os prejuízos deverão ser descarregados, lógica e democraticamente, sobre os cofres do erário federal, estadual ou municipal[11].

Reconhecendo-se que a existência de um interesse público a motivar a ação da Administração Pública é irrelevante para a caracterização do fato do príncipe, resta inquestionável a aplicação do artigo 486 para as situações geradas pelas determinações de distanciamento social. Para evitar a sobrecarga nos hospitais públicos e privados, “achatando a curva de contaminação da doença”, o Poder Público infringiu, com a melhor das intenções e sem dolo, as regras que asseguram a livre iniciativa, a liberdade econômica e o direito de ir e ver de empregados e empregadores. Caro verificada a impossibilidade de continuidade da atividade, deverá o Poder Público ser responsabilizado pelas indenizações devidas aos trabalhadores. 

Concluído que a situação hoje vivenciada caracteriza hipótese de fato do príncipe, cabe-nos passar à análise do alcance da responsabilidade do Estado. O caput do artigo 486 da Consolidação das Leis do Trabalho expressamente afirma que “prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável”. 

Há várias maneiras de interpretar a indenização mencionada no preceito legal. Uma delas é considera-la sinônimo de verbas rescisórias. Por essa interpretação caberia ao trabalhador de todas as parcelas devidas em caso de dispensa sem justa causa, tais quais décimo terceiro salário proporcional, férias proporcionais, saldo de salários, multa de 40% sobre os depósitos do FGTS (e mais os 10% previstos na Lei Complementar 105), aviso prévio indenizado e proporcional ao tempo de serviço.

Essa interpretação, contudo, não se coaduna com a literalidade do preceito legal e, por essa razão, não se afigura adequada. Algumas dessas parcelas, contudo, são nitidamente salariais e não indenizatórias e tem fato gerador anterior à rescisão do contrato de trabalho. Razão assiste, portanto, à Estêvão Mallet, segundo quem:

A obrigação do Poder Público abrange unicamente os valores diretamente resultantes da rescisão do contrato de trabalho, vale dizer, as indenizações previstas nos arts. 478, 479 ou 497, quando aplicáveis; a indenização de 40% sobre os valores depositados no FGTS e o aviso prévio indenizado. As demais parcelas, relacionadas apenas indiretamente com a rescisão do contrato, como as férias, o décimo terceiro salário, o saldo de salário e as diferenças de FGTS não depositadas são de responsabilidade do próprio empregador, porque relacionadas à fatos geradores anteriores à própria ruptura do vínculo[12].

O artigo 486 da Consolidação das Leis do Trabalho disciplinou em seu caput a caracterização do fato do príncipe e em seus parágrafos os aspectos processuais da discussão. O § 1º estatui que “Sempre que o empregador invocar em sua defesa o preceito do presente artigo, o tribunal do trabalho competente notificará a pessoa de direito público apontada como responsável pela paralisação do trabalho, para que, no prazo de 30 (trinta) dias, alegue o que entender devido, passando a figurar no processo como chamada à autoria”[13]. O preceito em questão foi feito com base do artigo 95 do Código de Processo Civil de 1939, que dispunha, em seu caput, que “Aquele que demandar ou contra quem se demandar acerca de coisa ou direito real, poderá chamar à autoria a pessoa de quem houve a coisa ou o direito real, afim de resguardar-se dos riscos da evicção” e, em seu § 3º, que “O denunciado poderá, por sua vez, chamar outrem à autoria e assim sucessivamente, guardadas as disposições dos artigos anteriores”.

O Código de Processo Civil referido foi sucedido pelo de 1973, que, por sua vez, foi substituído pelo de 2015. A terminologia utilizada para a intervenção de terceiros mudou. A figura correspondente na legislação vigente é a denunciação à lide, nos termos do artigo 125, caput  II, que conjugadamente estatuem que “ É admissível a denunciação da lide, promovida por qualquer das partes àquele que estiver obrigado, por lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo de quem for vencido no processo”.

O ideal, naturalmente, é que a reforma feita na legislação processual trabalhista em 2015 a terminologia utilizada pelo artigo 486 houvesse sido adequada. Não tendo isso sido feito, é necessário uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico para justificar a aplicação da intervenção de terceiros antes mencionada.

O §3º do artigo 486 também merecia uma adaptação para se harmonizar com as regras processuais vigentes. Com efeito, ele foi construído numa época em que à Justiça do Trabalho competia apreciar exclusivamente demandas relacionadas com vínculo empregatício, razão pela qual as hipóteses de intervenção de terceiros raramente eram admitidas. Essa é a razão pela qual o preceito em questão falava em incompetência da Junta de Conciliação, hoje Vara do Trabalho, e de remessa dos autos ao Juiz Privativo da Fazenda. Diante da consagração tanto da possibilidade de demanda contra a Fazenda Pública na Justiça do Trabalho, o que, aliás, já ocorre nos inúmeros casos em que a fazenda figura como tomadora de serviços terceirizados, quanto da denunciação à lide, o preceito legal em questão perde importância e já não apresenta qualquer aplicabilidade.


[1] Veja-se a esse respeito os seguintes verbetes da Enciclopédia Saraiva de Direito. CRETELLA JÚNIOR, José. Fato do Príncipe. In: FRANÇA, Raimundo Limongi. Enciclopédia Saraiva do Direito. Volume 36.  São Paulo: Saraiva, 1977, p. 323 e ROCHA, Osiris. Fato do Príncipe (Direito do Trabalho). In: FRANÇA, Raimundo Limongi. Enciclopédia Saraiva do Direito. Volume 36.  São Paulo: Saraiva, 1977, p. 325.

[2] Esse é o tratamento na seguinte obra: DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 600-601.

[3] RUSSOMANO, Mozart Victor. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho, volume II. 4ª edição. Rio de Janeiro: José Konfino, 1957, p. 783.

[4] FRANCO FILHO, Georgenor de Sousa; MARANHÃO. Covid 19: força maior e fato do príncipe. Revista Jurídica eletrônica RTM, n. 171, jan-mar 2020. Belo Horizonte, pp.16-25.

[5] TST, RR 5.931/86.8, Rel.: Min. Norberto Silveira, Ac. 3ª Turma 2.610/87)”.

[6] FRANCO FILHO, Georgenor de Sousa; MARANHÃO. Covid 19: força maior e fato do príncipe. Revista Jurídica eletrônica RTM, n. 171, jan-mar 2020. Belo Horizonte, pp.16-25.

[7] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24ª edição. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 221.

[8] RUSSOMANO, Mozart Victor. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho, volume II. 4ª edição. Rio de Janeiro: José Konfino, 1957, pp. 779-780.

[9] RUSSOMANO, Mozart Victor. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho, volume II. 4ª edição. Rio de Janeiro: José Konfino, 1957, p. 781.

[10] RUSSOMANO, Mozart Victor. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho, volume II. 4ª edição. Rio de Janeiro: José Konfino, 1957, p. 781.

[11] RUSSOMANO, Mozart Victor. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho, volume II. 4ª edição. Rio de Janeiro: José Konfino, 1957, pp. 781-782.

[12] MALLET, Estêvão. Factum principis. PINTO, José Augusto Rodrigues; MARTINEZ, Luciano; MANNRICH, Nelson. Dicionário brasileiro de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2013, pp. 199-200)

[13] O mesmo preceito apresenta também as seguintes regras procedimentais: “§ 2º – Sempre que a parte interessada, firmada em documento hábil, invocar defesa baseada na disposição deste artigo e indicar qual o juiz competente, será ouvida a parte contrária, para, dentro de 3 (três) dias, falar sobre essa alegação” e “§ 3º – Verificada qual a autoridade responsável, a Junta de Conciliação ou Juiz dar-se-á por incompetente, remetendo os autos ao Juiz Privativo da Fazenda, perante o qual correrá o feito nos termos previstos no processo comum”.   

REFERÊNCIAS

CRETELLA JÚNIOR, José. Fato do Princípe. In: FRANÇA, Raimundo Limongi. Enciclopédia Saraiva do Direito. Volume 36.  São Paulo: Saraiva, 1977, p. 323

DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 600-601.

FRANCO FILHO, Georgenor de Sousa; MARANHÃO. Covid 19: força maior e fato do príncipe. Revista Jurídica eletrônica RTM, n. 171, jan-mar 2020. Belo Horizonte

MALLET, Estêvão. Factum principis. PINTO, José Augusto Rodrigues; MARTINEZ, Luciano; MANNRICH, Nelson. Dicionário brasileiro de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2013

ROCHA, Osiris. Fato do Princípe (Direito do Trabalho). In: FRANÇA, Raimundo Limongi. Enciclopédia Saraiva do Direito. Volume 36.  São Paulo: Saraiva, 1977, p. 325.

RUSSOMANO, Mozart Victor. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho, volume II. 4ª edição. Rio de Janeiro: José Konfino, 1957

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